“Quando indicado, o início e otimização da terapêutica farmacológica não devem ser protelados. Investir na prevenção dos eventos cardiovasculares acarreta benefícios claros para os doentes e suas famílias, bem como para os sistemas de saúde e economia do país”, defende a interna do 4.º ano de formação específica em Medicina Geral e Familiar (MGF) na Unidade de Saúde Familiar (USF) Ara de Trajano, Joana Campelos. Em Portugal, as doenças cardiovasculares – onde se incluem o acidente vascular cerebral e o enfarte agudo do miocárdio – constituem ainda a principal causa de morte, representando quase 1/3 do total de óbitos. O desenvolvimento destas doenças depende da presença de fatores de risco, muitos deles modificáveis. A dislipidemia está entre os principais fatores de risco modificáveis, sendo também um dos mais prevalentes na população portuguesa. De acordo com o Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico 2015, a taxa de prevalência de colesterol total elevado nos residentes em Portugal é de 63,3%. Existem atualmente várias opções terapêuticas para o tratamento da dislipidemia, no entanto os valores-alvo de colesterol estão muito acima do desejável. De facto, os dados do estudo DYSIS para a nossa população mostram uma realidade inquietante: 62,9% e 68,0% dos indivíduos com indicação para terapêutica farmacológica não atingem as valores-alvo de colesterol LDL e total, respetivamente. Mas, então, o que está a falhar? Quais são as principais barreiras ao atingimento dos alvos terapêuticos? Primeiramente, a alteração do perfil lipídico é um problema subvalorizado pelos doentes. Por um lado, não é acompanhado de qualquer sintoma, o que leva a resistência à medicação e às mudanças nos comportamentos e estilo de vida. Por outro, muitos doentes não têm real consciência das potenciais consequências deste problema a médio-longo prazo. Há ainda aqueles que se “agarram” à crença – ou desculpa – de que as alterações nas suas análises se devem ao facto de terem ingerido uma maior quantidade de alimentos com elevado teor de gordura nos dias prévios à colheita. A adesão a hábitos de vida saudáveis é, de facto, um dos pilares no tratamento da dislipidemia. Contudo, frequentemente é insuficiente ou mesmo difícil de cumprir por parte do doente, pelo que o ato da prescrição médica é crucial para que se atinjam os objetivos terapêuticos. Mas, estaremos nós médicos devidamente preparados e motivados para a mudança? Estaremos nós – que todos os dias falamos em mudança comportamental aos nossos doentes – a mudar realmente a nossa própria conduta enquanto prescritores? Apesar de amplamente reconhecido o impacto da dislipidemia no risco cardiovascular global dos indivíduos, a verdade é que existe ainda uma grande inércia da nossa parte em relação ao seu tratamento e são várias as razões que sustentam esta inércia: acreditamos que o doente possa atingir o controlo metabólico apenas com alterações comportamentais, adiando demasiado a instituição de terapêutica farmacológica; prescrevemos muitas vezes estatinas de baixa potência a doentes que beneficiariam de uma intervenção mais “agressiva” ad initium; receamos os efeitos secundários da subida da dose destes fármacos, sem associarmos outras classes (como por exemplo a ezetimiba). Tendo em conta a realidade atual, é imperioso alertar consciências, mudar atitudes e comportamentos. As mais recentes orientações da European Society of Cardiology e European Atherosclerosis Society (2019), com alvos terapêuticos mais exigentes, constituem uma esperança para a mudança do paradigma. Um adequado controlo metabólico, com atingimento dos valores-alvo preconizados para cada indivíduo, de acordo com o seu risco cardiovascular global, e a correção de fatores de risco adicionais devem representar a prioridade do médico na abordagem da dislipidemia, no sentido de prevenir eventos agudos e outras complicações. Quando indicado, o início e otimização da terapêutica farmacológica não devem ser protelados. Investir na prevenção dos eventos cardiovasculares acarreta benefícios claros para os doentes e suas famílias, bem como para os sistemas de saúde e economia do país. Bibliografia: - Direção-Geral da Saúde. A Saúde dos Portugueses 2016. Direção-Geral da Saúde, 2016. - Silva PM, Cardoso SM, Adrião J, et al. Persistent lipid abnormalities in patients treated with statins: Portuguese results of the Dyslipidemia International Study (DYSIS). Rev Port Cardiol, 2011. Jan;30(1):47-63. - Mach F, Baigent C, Catapano AL, et al. 2019 ESC/EAS Guidelines for the management of dyslipidaemias: lipid modification to reduce cardiovascular risk. European Heart Journal, 2019. 00, 1-78.