Leia o artigo de opinião da autoria de Tiago Castelar, médico de Medicina Geral e Familiar e membro do Grupo de Estudos de Dor da APMGF (MGF.dor), acerca das perturbações do sono. Saiba mais na edição 134 do Jornal Médico.
No âmbito da Medicina Geral e Familiar, são várias as consultas nas quais as principais queixas são a insónia ou outras perturbações do sono. Apesar de afetar milhões de pessoas em todo o mundo, a patologia do sono continua a ser sub-diagnosticada. A par desta situação e com base num estudo recente sobre a dor crónica nas unidades de Cuidados de Saúde Primários em Portugal, verificou-se uma prevalência final de dor crónica estimada em 33,6% na população estudada1. Estes dados são de extrema importância, pois sabe-se que a relação entre dor e sono é bidirecional: a dor pode perturbar o sono, e, por sua vez, o sono perturbado reduz os limiares de dor podendo aumentar a sua intensidade.
Diversos estudos sobre este tema referem que a compreensão deste binómio pode ter um impacto significativo no tratamento da dor crónica2. Entre 55% a 88% dos doentes com dor crónica referem perturbações do sono e mais de 40% dos doentes com perturbações do sono reportam dor crónica3. As perturbações do sono, entre as quais a sua privação, estão associadas a muitas comorbilidades, custos sociais e a custos de saúde, diretos e indiretos. Existem evidências significativas de que a perturbação do sono predispõe ou agrava a dor, seja aguda ou crónica3. Além disso, sabe-se que um sono curto/insuficiente pode causar um aumento da sensibilidade à estimulação dolorosa e o desenvolvimento ou exacerbação da dor crónica.
Por sua vez, a dor pode causar vários despertares noturnos, resultando numa diminuição na quantidade e qualidade do sono. Esta relação bidirecional entre um sono de pouca qualidade e a dor perpetua e amplifica as perturbações do sono e o agravamento da dor através de um círculo vicioso. A título de exemplo, uma noite de insónia agrava a intensidade da dor pré-existente, que por sua vez perturba ainda mais o sono, e este ciclo vai persistindo e agravando ao longo do tempo4. A privação de um sono de qualidade parece ter um efeito inibidor em vários sistemas/mediadores com propriedades predominantemente analgésicas, tais como o sistema opioide e endocanabinoide, e pelo contrário apresenta um efeito ativador de sistemas/mediadores com propriedades predominantemente hiperalgésicas, incluindo o sistema adenosinérgico e imunológico. Verificou-se que pequenas melhorias a curto prazo na qualidade do sono são capazes de produzir um efeito de melhoria a longo prazo tanto na dor como no sono.
Por outro lado, sabe-se que o sono se caracteriza por várias fases, desde o sono leve, até ao sono de movimento rápido dos olhos (REM). Para uma pessoa obter uma sensação de sono reparador é necessário um equilíbrio entre todas as fases do sono, especialmente o sono REM. A dor causa uma interrupção desse ciclo e interfere na progressão das fases do sono, levando a um sono menos reparador e ao cansaço no dia seguinte5. Apesar do reconhecimento da existência desta relação bidirecional, o conhecimento científico sobre os mecanismos neurobiológicos subjacentes a esta relação recíproca ainda é limitado.
No futuro, a compreensão pormenorizada destes mecanismos será fundamental para estimular o desenvolvimento de novas opções terapêuticas e talvez também intervenções comportamentais que sejam capazes de ajudar a controlar ou aliviar a dor, potencialmente utilizando vias compartilhadas que modulam o sono e a dor. Perante as interações altamente complexas e recíprocas entre os vários sistemas neurobiológicos, são diversas as implicações clínicas daí resultantes, tanto comportamentais quanto físicas, sendo por isso importante ouvir e valorizar as queixas e sintomas dos doentes de modo a atuar atempadamente.
Referências:
1. Antunes F, Pereira RM, Afonso V, Tinoco R. Prevalence and Characteristics of Chronic Pain Among Patients in Portuguese Primary Care Units. Pain Ther. Epub 2021 Aug 28
2. Haack M, Simpson N, Sethna N, Kaur S, Mullington J. Sleep deficiency and chronic pain: potential underlying mechanisms and clinical implications. Neuropsychopharmacology. 2020 Jan;45(1):205-216. doi: 10.1038/s41386-019-0439-z
3. Adam Woo & Gamunu Ratnayake. Sleep and pain management: a review. Pain Management. 2020. 1758–1869
4. Nijs J, Mairesse O, Neu D, Leysen L, Danneels L, Cagnie B, Meeus M, Moens M, Ickmans K, Goubert D. Sleep Disturbances in Chronic Pain: Neurobiology, Assessment, and Treatment in Physical Therapist Practice. Phys Ther. 2018 May 1;98(5):325-335. doi: 10.1093/ptj/pzy020
5. Finan PH, Goodin BR, Smith MT. The association of sleep and pain: an update and a path forward. J Pain. 2013 Dec;14(12):1539-52. doi: 10.1016/j.jpain.2013.08.007
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.