Joana Câmara: “aproximar as tarefas de treino cognitivo às atividades de vida diária” pretende ajudar doentes psiquiátricos crónicos
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24/01/2023 17:04:01
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Jornal Médico
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Joana Câmara: “aproximar as tarefas de treino cognitivo às atividades de vida diária” pretende ajudar doentes psiquiátricos crónicos

O Jornal Médico esteve à conversa com Joana Câmara, investigadora do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra (FPCEUC), a propósito do programa de treino implementado em doentes psiquiátricos crónicos que contribui para o desenvolvimento cognitivo e motor. Este treino cognitivo computorizado, denominado Full-Body Interaction Cognitive Training (FBI-CT), revelou ter impactos positivos em indicadores cognitivos, tais como velocidade de processamento, atenção sustentada por curtos períodos de tempo e memória verbal, como também em indicadores não cognitivos, como diminuição da sintomatologia depressiva. Leia a entervista na integra. 

Jornal Médico (JM) | Refere que “até à data, são ainda escassos os estudos científicos que avaliam o impacto de intervenções combinadas com enfoque funcional em população psiquiátrica, sendo este um tema inovador no processo de intervenção terapêutica nestes quadros clínicos”, elucida a investigadora. Como surgiu este projeto e a sinergia entre CINEICC, FPCEUC e NeuroRehabLab? 

Joana Câmara (JC) | Este projeto surgiu no âmbito do meu doutoramento em Neuropsicologia na Faculdade de Psicologia e de Ciências de Educação da Universidade de Coimbra, sob supervisão do Prof. Doutor Eduardo Fermé e da Prof.ª Doutora Manuela Vilar, e em parceria com o NeuroRehabLab da Universidade da Madeira, laboratório de investigação onde me encontro a desenvolver o plano de trabalhos. Para efeitos de contextualização, o meu doutoramento visa o desenvolvimento e validação clínica de uma plataforma de treino cognitivo para sobreviventes de AVC – o NeuroAIreh@b –, que trará a possibilidade de os mesmos iniciarem um programa de treino cognitivo, com temáticas funcionais, à distância, numa fase precoce do seu processo de recuperação. 

Este é um projeto multidisciplinar que conta com o envolvimento de uma equipa de profissionais da área da engenharia informática, design e (neuro)psicologia. Inicialmente, pretendíamos implementar este projeto em sobreviventes de AVC, no entanto a situação pandémica dificultou a recolha de dados em contexto hospitalar. Como tal, tivemos de reajustar os objetivos do projeto e ponderar implementá-lo junto de outras populações clínicas, utilizando, para o efeito, outra ferramenta tecnológica já desenvolvida – o Musiquence –, em virtude de o desenvolvimento da plataforma NeuroAIreh@b estar ainda em curso. Felizmente, tivemos abertura da Casa de Saúde Câmara Pestana para implementar este projeto junto de população psiquiátrica a residir em unidades de longo internamento. No final de 2022, os resultados do estudo-piloto foram publicados na revista científica Games for Health Journal, em co-autoria com Luís Ferreira, Ana Lúcia Faria, Manuela Vilar e Sergi Bermúdez i Badia. 

JM | Refere ainda, de acordo com o Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, que “mais de um quinto dos portugueses (22.9%) apresenta uma patologia psiquiátrica, número que seguramente tem vindo a crescer desde a pandemia”. De que forma este programa, ao combinar componentes cognitivas e motoras, visa ajudar esta população?

JC | As intervenções que combinam o treino cognitivo e motor permitem intervir simultaneamente em ambos os domínios, o que é, desde logo, uma das suas grandes vantagens. E porquê combinar estas duas componentes e integrá-las num programa de intervenção junto de população psiquiátrica? Em primeiro lugar, está sobejamente documentado que a população psiquiátrica apresenta défices cognitivos multidomínio que tendem a persistir após remissão dos quadros, e com potencial para agravarem com as recidivas, configurando assim um fator de risco para o desenvolvimento de doenças neurodegenerativas, como é o caso dos quadros demenciais, na idade avançada. Suplementarmente, estes défices cognitivos, a par de comprometerem a adesão dos/as pacientes às terapêuticas, apresentam um impacto negativo na sua qualidade de vida e funcionalidade. 

Além disso, pessoas com estes quadros são comummente mais sedentárias do que a população em geral e, por isso, mais suscetíveis de desenvolver doenças cardiovasculares e metabólicas que agravam a sua condição clínica, tendo repercussões negativas do ponto de vista cognitivo. Neste contexto, as intervenções que combinam a cognição e o movimento poderão trazer mais-valias em termos de intervenção, contribuindo para a promoção do funcionamento cognitivo e da atividade física. Outro aspeto que importa salientar, tem que ver com o facto de as intervenções combinadas terem ainda a vantagem de ser mais exequíveis num contexto de internamento psiquiátrico, no qual, frequentemente, os recursos humanos e o tempo para intervir são escassos.

JM | Em que consiste este “treino de competências funcionais”?

JC | As sessões deste programa estão organizadas numa série de temáticas funcionais, com o objetivo de incrementar a validade ecológica do programa, ou seja, de aproximar as tarefas de treino cognitivo às atividades de vida diária, com vista à promoção das competências funcionais. As temáticas abordadas incluem a comunicação funcional, o uso de transportes públicos, a confeção de refeições, a ida às compras, a gestão financeira e a gestão de questões relacionadas com a saúde. Neste sentido, cada sessão inclui tarefas de treino cognitivo orientadas para cada uma destas temáticas. 

Por exemplo, numa das sessões de treino cognitivo, as participantes realizaram tarefas orientadas para o treino das funções executivas, nomeadamente tarefas de sequências de ações, que consistiam na organização, pela ordem correta, de um conjunto de imagens projetadas na parede e que ilustravam uma receita tradicional portuguesa (por ex., Cozido à Portuguesa), sendo que a seleção das imagens implicava a realização de movimentos, detetados por um sensor de movimentos. Através deste projeto, pretendemos melhorar indicadores cognitivos, emocionais e de bem-estar, mas, sobretudo, de funcionalidade das pessoas integradas no programa. Afinal, a promoção da capacidade funcional e a reintegração na comunidade serão sempre os objetivos últimos de qualquer processo de reabilitação cognitiva.

JM | Qual é o futuro deste programa ao nível da aplicabilidade prática na sociedade? 

JC | O programa está no momento a ter continuidade na mesma instituição de saúde mental onde os dados foram recolhidos, mas noutros moldes, ou seja, com outro tipo de tarefas, ainda que englobando a mesma abordagem combinada (treino cognitivo e motor). Uma vez que realizámos um estudo-piloto para avaliar a exequibilidade, aceitabilidade e impacto preliminar do programa em indicadores cognitivos e não cognitivos, futuramente seria importante levar a cabo um estudo com uma amostra de dimensão mais alargada, por forma a analisarmos o seu impacto, quer a curto, quer a longo prazo, nos indicadores supramencionados, e averiguar se eventuais ganhos decorrentes do programa são transferidos para as atividades de vida diária dos participantes. Esse tipo de investigação é fundamental para que se possa equacionar a sua aplicação mais generalizada junto da população psiquiátrica.

JM | Quais devem ser as características apresentadas para que o doente possa beneficiar deste programa? 

JC | De uma maneira geral, é importante que as pessoas que venham a integrar o programa não estejam numa fase aguda da doença psiquiátrica e não apresentem alterações na esfera motora que inviabilizem a sua participação (i.e., que sejam capazes de realizar os movimentos necessários para poderem interagir com o conteúdo de treino). Estes são, diria, os critérios mínimos. Adicionalmente, recomendamos que as pessoas tenham alguma escolaridade, porque muitas das tarefas implicam a leitura e interpretação de textos/instruções; que apresentem acuidades visual e auditiva suficientemente mantidas ou compensadas, para que possam reconhecer os estímulos visuais do programa e identificar o feedback auditivo em caso de acerto ou de erro; que, do ponto de vista da linguagem, sejam capazes, por um lado, de expor as suas dúvidas e questões e, por outro, de compreender os objetivos das tarefas do programa; e, finalmente, que estejam motivadas para participar. A motivação é um aspeto central da intervenção, sem o qual torna-se muito difícil obtermos resultados benéficos.

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Editorial | Joana Torres
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