O uso dos fortificantes do leite humano foi um assunto em destaque nas “Controvérsias e Desafios”, numa preleção a cargo de Neena Modi, professora de Medicina Neonatal no Imperial College London. Saiba mais na edição 137 do Jornal Médico.
Na sua intervenção, Neena Modi, também investigadora e presidente eleita da Associação Europeia de Medicina Perinatal, começou por recordar os objetivos da fortificação, referindo a recomendação, baseada em consenso sobre as necessidades proteicas, de 2010 [Agostoni C, et al. Nutr. 2010 Jan;50(1):85-91] que diz que “o aumento de peso próximo aquele in utero pode ser alcançado com uma ingestão de energia não proteica de 90 kcal/dia e uma ingestão de proteína de 3,0 g/kg/dia” e que “a suplementação de proteína precisa de compensar o déficit proteico acumulado observado em quase todos os pequenos prematuros, podendo ser aumentado até um máximo de 4,5 g/kg/dia, dependendo da magnitude do déficit acumulado, recomendando uma ingestão de proteína de 4,0 a 4,5 g/kg/dia para bebés de até 1.000 g e de 3,5-4,0 para bebés de 1.000 g a 1.800 g”. Ora, de acordo com a investigadora, “felizmente que no update de 2022 ainda apenas disponível como preprint, estas recomendações mudaram, tendo sido reduzida a ingestão de proteínas para 3,5-4,0 g/kg/dia para bebés muito prematuros”.
Depois, continuou a oradora, “existe outro statement de 1977, da American Academy of Pediatrics, que influenciou a prática ao longo dos anos, que afirma que o objetivo dos regimes alimentares para os bebés com baixo peso ao nascer é obter uma rápida reposição do crescimento pós-natal a uma taxa que se aproxime do crescimento intrauterino”. Mas, segundo Neena Modi, “esta declaração tem sido amplamente interpretada como significando que é ideal para um bebé muito prematuro atingir o tamanho de um bebé nascido a termo”, o que na sua opinião é “uma falsa interpretação”.
Para a professora de Medicina Neonatal, “os gráficos do peso ao nascer não devem ser usados como gráficos de crescimento, pois forçam um bebé prematuro a seguir uma trajetória para atingir o tamanho de um bebé a termo completo no mesmo tempo.” Além disso, sabemos que “os bebés nascidos prematuros geralmente pesam menos do que teriam se tivessem permanecido no útero e, por isso, geralmente apresentam restrição de crescimento”.
Por estes motivos, segundo Neena Modi, colocam-se duas questões cruciais: “Queremos atingir o peso que o bebé teria se tivesse permanecido in utero ou atingir a velocidade de peso que o bebé teria no útero?” Como respondeu, “não sabemos ainda a resposta, pois no primeiro caso o aumento de peso será rápido e excederá a velocidade fetal e, no segundo caso, o bebé pesará menos a termo do que o de uma gestação que foi levada até ao fim”. Como tal, “é uma incerteza séria esta de não sabemos a que velocidade devem os bebés prematuros aumentar de peso”, observou a especialista, referindo que “por outro lado, sabemos que a antropometria do bebé a termo não prediz o neurodesenvolvimento posterior e que os bebés amamentados ganham peso mais lentamente do que bebés alimentados com fórmula e têm melhores resultados de neurodesenvolvimento”. Adicionalmente, como notou, “a evidência que suporta a rotina da fortificação é totalmente inadequada, com estudos pequenos e com metodologia frágil, sendo também a prática clínica variável em todo o mundo”.
Consequências do uso rotineiro dos fortificantes “podem ser perigosas”
Na opinião da investigadora, “as consequências do uso rotineiro dos fortificantes podem ser perigosas”, até porque “sabemos que um bebé prematuro que ingere 200 ml/kg/dia de leite materno não fortificado terá uma ingestão média de proteína de 3 g/kg/dia com variação de 1,4 a 4,8 g/kg/dia, e sabemos que os fortificantes de leite materno comerciais fornecem 1,1 a 2,4 g de proteína/100 ml de leite. Ou seja, fazer uma fortificação por rotina significa que alguns bebés irão ter uma ingestão de proteína superior a 5g/kg/dia”. Por outro lado, “há evidências razoáveis de que há um benefício dose-resposta para o leite materno fresco e que reduzir a ingestão de leite materno parece ser imprudente”, reforçou. [Semin Fetal Neonatal Med. 2021 Jun;26(3):101216].
Em suma, e de acordo com Neena Modi, “existem inúmeras preocupações no uso entusiasta da fortificação, suportadas pela literatura e investigação observacional, que nos mostram que a ingestão excessiva de proteínas aumenta o risco de sépsis, compromete o neurodesenvolvimento, eleva a ureia, leva a ventilação prolongada, à displasia broncopulmonar, obesidade, adiposidade abdominal, insuficiência renal e a uma maior mortalidade”, acrescentando que “a exposição precoce a proteínas complexas do leite de vaca pode aumentar as respostas de autoimunidade de células β associadas à diabetes tipo 1 em crianças geneticamente em risco” e que “evitar o consumo de produtos bovinos nos primeiros 14 dias está associado à redução da enterocolite necrótica”.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.