Sara Gamboa Madeira e Luís Rebelo: Tabaco, uma porta de entrada para outros consumos
DATA
20/01/2023 09:35:20
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Jornal Médico
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Sara Gamboa Madeira e Luís Rebelo: Tabaco, uma porta de entrada para outros consumos

No combate ao tabagismo o foco já não é no cigarro tradicional, mas sim na nicotina também presente nos diversos produtos apelativos vendidos como opções “seguras”. Uma mudança de paradigma onde está incluída a abordagem dos profissionais, nem sempre preparados para ajudarem os fumadores a ultrapassarem este comportamento aditivo (CA), que pode ser uma porta de entrada para outros consumos. Luís Rebelo e Sara Gamboa Madeira falam de diversas questões sobre a luta contra o tabagismo nos cuidados de saúde primários (CSP). Saiba mais na edição 137 do Jornal Médico. 

Há três anos Luís Rebelo implementou a Consulta de Cessação Tabágica no Centro de Saúde Amadora. As suas consultas decorrem todas as quartas e quintas-feiras, sendo este um dos 29 pontos de consulta da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) contabilizados no primeiro semestre de 2022. “Em 2019 tivemos uma cobertura muito importante de consultas intensivas. Existiam 51 pontos de consulta nos CSP, o que significa que havia 51 equipas e 51 locais onde se realizavam consultas semanais. Como temos 15 Agrupamentos dos Centros de Saúde (ACES) na ARSLVT, quer dizer que cada ACES tinha várias consultas”, relata o médico, que é diferenciado em diversas áreas e professor universitário aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). Está envolvido na área do tabagismo há 20 anos, dos quais 10 a coordenar o Programa Regional de Prevenção e Controlo do Tabagismo (PRPCT), que decorre do Programa Nacional de Prevenção e Controlo do Tabagismo da Direção-Geral da Saúde (DGS), que é liderado por Emília Nunes.

Luís Rebelo conta que durante a pandemia por COVID-19 “houve uma quebra de cerca de 50% desses pontos de consulta”, mas que agora está a haver uma recuperação. “Atualmente estamos com uma oferta de cerca de 100 horas semanais de consulta em 29 unidades de saúde. Em 2019, com 46 pontos de consulta, estávamos com uma oferta de 134 horas. As equipas estão a fazer mais horas de consulta, apesar de funcionarem em menos locais.”   

Para o docente é importante esclarecer que os CA têm uma base, ou seja, um denominador comum, com especificidades próprias. “As pessoas são as mesmas, mas podem ter vários CA em simultâneo ou ao longo da vida, tornando a abordagem mais complexa. Por exemplo, sabemos que quem tem problemas de abuso de álcool tem mais hipóteses de ter consumo tabágico e vice-versa. As dependências não são todas iguais, têm características específicas, têm ‘clientelas’ diferentes e os profissionais têm que ter formações diferenciadas, sendo o setting de acompanhamento destas pessoas individualizado produto a produto.” 

No consumo tabágico Luís Rebelo sublinha que o que está em causa é sobretudo a dependência à nicotina, que existe na folha da planta tabaco. Trata-se de “um produto que é hoje bem conhecido e cada vez temos mais interesse em aprofundar o seu impacto no ciclo da dependência física e psicológica”. 

Esta é uma mudança de paradigma espoletada pelo aparecimento de novos produtos no mercado classificados por Luís Rebelo como “apresentações atrativas, fáceis de usar, de acesso simples e adaptadas ao consumidor”, mas que “têm a mesma consequência: a necessidade física e psicológica de a partir de determinada altura repetir e manter esse consumo”. Por este motivo, defende a realização de inquéritos “mais detalhados” aos utentes. “Não podemos perguntar à pessoa apenas se fuma. Temos que questionar sobre o tipo de produto - cigarro tradicional, tabaco de enrolar, cigarro eletrónico com ou sem nicotina, tabaco aquecido, pó de tabaco, etc. Na verdade, há cada vez maior diversidade. Socialmente não temos conseguido controlar o ímpeto das empresas tabaqueiras.”

Em Portugal, no ano de 2019, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), existiam cerca de 1 milhão e 300 mil pessoas a fumar diariamente com 15 ou mais anos, evidencia Luís Rebelo, frisando o impacto na saúde individual. “Sabemos que por dia morreram em Portugal 37 pessoas com doenças relacionadas com o consumo do tabaco e nicotina”, menciona e dá como exemplo as mortes causadas por doenças oncológicas que estão relacionadas com o consumo do tabaco. 

Sara Gamboa Madeira é médica especialista em MGF na UCSP Azeitão - ACES Arrábida e fundou a consulta de Cessação Tabágica do Centro de Saúde de Massamá. Conhecedora deste CA, até porque também pertence ao PRPCT da ARSLVT, a médica alerta para o facto de o tabaco ser, muitas vezes, “a porta de entrada para outros consumos”. Na sua perspetiva, “ao prevenir a entrada, é prevenir o caminho para outros vícios. O tabagismo não é um hábito, é uma doença e o nosso papel é sensibilizar as pessoas precocemente, para intervir o mais cedo possível”. 

Abordagem dos profissionais nas consultas de cessação tabágica 

No entender do coordenador do PRPCT, “os profissionais têm que estar preparados não só para questionar corretamente as pessoas na consulta, mas também para lhes fornecerem a informação técnica e os apoios necessários farmacológicos e não farmacológicos, para poderem ultrapassar a dependência. É possível parar de fumar”.

Nas suas consultas, este médico explica a dependência falando em “dois braços”: o físico e o psicológico. De um lado, o corpo - o cérebro, em particular - pede mais e mais nicotina, de outro, a componente psicológica da adição. “Temos de encontrar uma estratégia capaz de dar resposta às duas vertentes”, frisa e fala da eficácia dos medicamentos existentes e das técnicas cognitivo-comportamentais essenciais para a dependência comportamental.

Por norma, o acompanhamento tem a duração de, pelo menos, seis meses. “As equipas são constituídas por um médico de família, um enfermeiro e uma secretária clínica. Algumas equipas têm psicólogo e nutricionista”, elucida Luís Rebelo. 

Para Sara Gamboa Madeira, “em termos práticos, é importante que os médicos e enfermeiros dos CSP realizem uma intervenção muito breve, perguntando se a pessoa fuma algum tipo de tabaco para depois aconselharem de forma individualizada”. Na fase seguinte, explica a médica, é feita uma avaliação com o apoio de alguns questionários, no sentido de se perceber o grau da dependência e depois intervir. Pode ser complexo ao ponto de referenciarmos para uma consulta intensiva de apoio à cessação tabágica”. 

As pessoas aderem ao programa por sua iniciativa, sendo os três primeiros meses após a cessação muito importantes. “Por vezes os sintomas de privação podem ser mais intensos do que os benefícios que as pessoas sentem. Pode haver recidiva do consumo”, nota a médica de família, que informa os seus doentes o quão difícil pode ser o processo, incentivando sempre que o intuito é “deixar de fumar para sempre”, pelo que considera fundamental encontrarem-se “estratégias para dar resposta ao vício psicológico e físico”.  

Existem medicamentos específicos para colmatar a sintomatologia física, todavia, segundo Luís Rebelo, são dispendiosos. “Precisamos urgentemente que o poder político se concentre na necessidade de termos medicamentos a preços acessíveis, comparticipados ou entregues mediante certas condições a estas pessoas, tal como acontece com a dependência de substâncias ilícitas ou os anticoncecionais no planeamento familiar”, sustenta. “Os medicamentos dão uma grande ajuda, mas não são suficientes. É necessária uma abordagem motivacional, em conjunto com a farmacologia”, frisa Sara Gamboa Madeira evidenciando que este é “um investimento de alguns meses mas com ganhos para o resto da vida”.

No terreno, a médica nota interesse por parte dos médicos de família relativamente a este CA. “Percebem que é determinante para a saúde dos seus doentes, seja nos doentes respiratórios, cardiovasculares ou oncológicos, seja nas pessoas que não têm doenças”, comenta a médica, indicando que “a intervenção é relativamente simples” e que “as pessoas são ajudadas a criarem as suas próprias razões para tomarem a decisão de serem mais saudáveis, não fumando”.

Existem “muitas lacunas na formação dos médicos e dos enfermeiros nesta área”

Para uma boa preparação e uma abordagem de sucesso, a formação é fulcral. Todavia, Luís Rebelo faz referência a um estudo da DGS que indica haver “muitas lacunas na formação pré-graduada dos médicos e dos enfermeiros nesta área”. O especialista em MGF comenta que estes profissionais “chegam ao final da formação e não são capazes de assumir a responsabilidade de ajudar um dependente de nicotina a ultrapassar essa adição”. 

No que respeita à formação pré-graduada, o antigo docente explica que “os curricula não estão elaborados de forma a responder a muitas das necessidades em saúde dos portugueses”. Já no internato da especialidade de MGF, “há formação na área do tabagismo e intervenções breves dos jovens médicos que estão cada vez mais despertos para a generalidade das adições”, acrescenta e salienta a importância da formação pós-graduada. Aliás, foi por iniciativa de Luís Rebelo que foi criado um curso intensivo de três dias destinado a médicos e enfermeiros na ARSLVT, que vai na 17.ª edição. 

Sara Gamboa Madeira refere que teve o privilégio de ter sido aluna de Luís Rebelo. “Ao longo do curso de Medicina vamos tendo formação, mas está dispersa por diversas disciplinas. Podemos e devemos melhorar no sentido de ter uma formação mais consistente e estruturada na abordagem das dependências, dos comportamentos e do estilo de vida em geral”, afirma e comenta que as “doenças não comunicáveis” são aquelas que “mais matam”, sendo que “muitas delas têm um grande impacto nos comportamentos e estilos de vida”. 

A formação sobre tabagismo que teve durante a licenciatura foi suficiente para despertar o interesse ao ponto de optar por um mestrado nesta área, aumentando ainda mais o know-how. Mais tarde, Sara Gamboa Madeira realizou o curso pós-graduado em cessação tabágica da ARSLVT, onde atualmente colabora como formadora, para além de ser docente da FMUL.

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.