A abordagem baseada num “modelo integrado e multidisciplinar” também dita o sucesso da Consulta de Adição que funciona no concelho de Cascais, uma valência ela própria integrada numa estrutura dos cuidados de saúde primários (CSP). José Miragaia considera-se “um homem do terreno” e fala desta consulta, que ajudou a fundar, focalizando a atenção na primeira área de missão, a toxicodependência, e na última, as novas dependências. Saiba mais na edição 137 do Jornal Médico.
Decorria o ano de 1986 quando José Miragaia iniciou a carreira de médico de família no Barreiro. Nessa altura, emergiram “os problemas graves relacionados com a toxicodependência” e como o então jovem médico “não sabia como dar resposta” investiu em formação. “Em 1986 fiz um curso em prevenção primária da toxicodependência com o Prof. Domingos Neto e, em 1987, sobre prevenção secundária. Em 1988 fiz um estágio prático no Centro das Taipas com o Dr. Luís Patrício e o Dr. Nuno Miguel em 1989 foi um ano sabático”, partilha e menciona a data exata – 1 de junho de 1990 – em que participou na abertura do CAT de Almada, que ainda hoje existe. No Ano seguinte participaria na abertura da segunda unidade na margem sul do Tejo, em Setúbal.
Em 1998, uma vez que já trabalhava em parceria com o extinto Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT), José Miragaia ofereceu os seus serviços nesta área em Cascais, zona onde iria continuar a exercer Medicina Geral e Familiar (MGF). “O IDT aceitou, passei a trabalhar sempre em parceria com o IDT e nunca mais parei. Apenas tive de interromper com a minha aposentação, em dezembro de 2021”, comenta e explica que solicitou ao Ministério da Saúde retomar a atividade. Reiniciou, assim, no dia em que concedeu a entrevista ao Jornal Médico, a 7 de setembro de 2022. “Considero-me um homem do terreno e não de formalidades, nem de investigação. Sou o clínico, que está cá hoje, amanhã e sempre, enquanto puder”, afirma, com uma enorme felicidade por ter retomado funções na Consulta de Adição do Eixo Oeiras/Cascais do CRI/DICAD/Aces Cascais, da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT).
Durante 10 anos, esta consulta descentralizada funcionou no Centro de Saúde de Cascais, que está localizado na vila. Transitou para o Centro de Saúde de Alcabideche (USF Alcais) após a inauguração do edifício, no dia 1 de setembro de 2008. A consulta resulta de “uma parceria informal, embora prefira o termo funcional, entre a ARSLVT, através do Centro de Respostas Integradas de Lisboa Ocidental (CRI) [organismo da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos (DICAD)] e o Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Cascais”, esclarece o médico de família, sublinhando que esta consulta tem uma “dimensão formativa, destinada sobretudo a médicos Internos de Formação Específica nas áreas da MGF e da Psiquiatria.
“Aqui não há discriminação nem segregação”
Inicialmente, era prestado apoio a pessoas que pediam ajuda porque tinham problemas ligados ao consumo e/ou dependência de substâncias psicotrópicas. “Havia a necessidade de existir esta resposta em Cascais, porque a prevalência quer dos pedidos, quer dos problemas ligados às dependências, era tão acentuada que gerou uma grande preocupação da autarquia e da população”, conta José Miragaia. Em 1998: “A equipa de tratamento do CAT Parede começou a dar resposta e eu dava apoio clínico e medicamentoso aos utentes”, acrescenta, frisando o “modelo integrado e multidisciplinar” que caracteriza a valência, bem como o facto de estar integrada numa unidade de saúde de cuidados de saúde primários (CSP). “Servimos como um excelente exemplo de que é possível a integração do utente. Aqui não há discriminação nem segregação. É um sinal de aceitação independentemente do problema da pessoa”, destaca.
A maioria dos doentes são referenciados por médicos e/ou outros profissionais de saúde, porém, segundo José Miragaia, existe “uma percentagem assinalável” de pessoas que vêm por sua iniciativa. Os utentes são maioritariamente da área de influência do ACES Cascais, mas alguns são “ocasionalmente referenciados por colegas, devido a determinadas especificidades”. O médico de família fala na “acessibilidade e continuidade dos cuidados” enquanto “estratégia dos CSP para garantir a adesão dos doentes”, razão por que nenhuma pessoa é rejeitada. “ Já consultámos pessoas desde a ilha do Pico (local do utente mais distante) até Macedo de Cavaleiros.”
Os doentes são recebidos e conduzidos pelos técnicos psicossociais para uma reunião clínica, onde é feita a triagem. Os casos são depois atribuídos aos técnicos da Consulta de forma a dar início ao programa. A consulta é pluridisciplinar para todas estas áreas, contudo, em caso de necessidade, as pessoas podem ser encaminhadas para os grupos de autoajuda, como os Narcóticos Anónimos ou os Alcoólicos Anónimos, para Internamento ou para apoio psiquiátrico.
Da toxicodependência às novas dependências
A toxicodependência foi a primeira área de missão, o que explica que os utentes mais antigos sejam toxicodependentes, sobretudo os heroinómanos. “Quando o IDT assumiu a área do alcoolismo incluímos essa área. Depois disso, a consulta cresceu e diversificou-se em termos de competências. Por exemplo, em 2008, fiz formação em cessação tabágica com a Sociedade Portuguesa de Pneumologia e com estruturas do Ministério da Saúde, pelo que passámos a ter essa área”, conta José Miragaia, mencionando que “cada profissional tem as suas próprias competências”, até porque “a abordagem difere consoante a dependência”.
Há cerca de três anos foi criada a última diferenciação: Novas dependências. “Ainda não há muita procura, mas temos a perceção que está a suscitar muita preocupação às pessoas, às famílias e à comunidade científica”, evidencia o especialista em MGF.
Está incluído o jogo patológico (gambling), que já é considerado transtorno aditivo sem substância. As novas tecnologias trouxeram o gaming, que é a utilização excessiva das novas tecnologias para jogar exclusivamente online, mas ainda não está classificado como transtorno aditivo porque, segundo a Associação de Psiquiatria Americana, são necessários mais estudos. Contudo, José Miragaia informa que “há uma referência na DSM-5 relativamente ao gaming, indicando que comprovadamente leva a uma estimulação dopaminérgica, ou seja, vai ativar os mecanismos cerebrais, havendo uma estimulação dos mecanismos neuronais e dos mecanismos de recompensa, algo que acontece com qualquer dependência com substância”.
Outras novas dependências abrangem a utilização de tablets, smartphone ou computadores, que pela fácil acessibilidade e pelo anonimato conduzem ao “uso, repetição do uso, abuso e dependência”, nota o médico, ressalvando que “este é o caminho, o que não significa que todos os utilizadores sejam dependentes”. Comenta que “é difícil classificar como dependência” e que existem “escalas que permitem avaliar”. Diz também que “90 % das pessoas apenas usam as novas tecnologias, já os abusadores (cerca de 9 %) começam a manifestar alguns sintomas de privação e os dependentes (aproximadamente 1 %) apresentam sintomas marcados, como ansiedade, depressão, agitação, insónia, conflitos laborais e/ou familiares, desinteresse pelas atividades do dia a dia, problemas no estudo ou isolamento dos pares”.
A abordagem dos profissionais de saúde difere consoante a dependência, com substância ou sem substância. Todavia, “todas funcionam da mesma forma, havendo ativação dos mecanismos de recompensa, sobretudo da dopamina, e na ausência provoca o efeito inverso”, sublinha José Miragaia, frisando que o objetivo último em cada comportamento aditivo é diferente.
Enquanto na dependência de substâncias a meta é a abstinência, havendo “um caminho para a pessoa atingir esse objetivo”, em relação às novas dependências sem substância – gaming, compras compulsivas, uso excessivo de novas tecnologias, adição ao sexo e a conteúdos pornográficos na net, etc. – “não pode ser fixada a abstinência”, indica e fundamenta com a necessidade atual de recorrer às ferramentas tecnológicas. “Não podemos colocar como objetivo último a abstinência total e definitiva. Devemos, sim, limitar e racionalizar o uso, para que possamos dar oportunidade às pessoas de experimentarem outros interesses e de construírem capacidades de dizerem não. Esta ação é tecnicamente designada ‘mecanismos de coping’, que são estratégias de enfrentamento da situação.”
Craving é um termo usado para referir a intensa necessidade de repetir o consumo compulsivamente. Surge depois a tolerância que é a habituação. Com as redes sociais, exemplifica o médico de família, “já não há satisfação com 10 minutos nem quando ocorrem falhas de rede, a pessoa fica ansiosa”.
Não chegam muitos pedidos de ajuda ligados às novas dependências e quando surgem é em fases muito adiantadas, por parte do próprio ou de familiares, segundo José Miragaia. Regra geral, “é uma população muito jovem”, refere, realçando que os CSP são uma “porta de entrada” e que “o médico de família deve adotar uma estratégia de intervenção mínima, em que são feitas questões que levam a pessoa a pensar que pode estar a abusar; ou numa estratégia mais completa de intervenção breve com recurso aos cinco Aa: abordar, aconselhar, avaliar, ajudar e acompanhar”. Se a situação se revelar mais complicada, a referenciação a uma Consulta especializada pode tornar-se necessária e assim “é possível avançar com a técnica da entrevista motivacional, que ajuda a pessoa a situar-se e a resolver a ambivalência, ganhando confiança”.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.