José António Rocha Almeida: Impasse na rede de serviços para problemas com o consumo de substâncias
DATA
06/01/2023 11:28:52
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Jornal Médico
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José António Rocha Almeida: Impasse na rede de serviços para problemas com o consumo de substâncias

A rede de serviços públicos e privados que dá resposta aos problemas com o consumo de substâncias encontra-se “numa indefinição do modelo organizativo desde 2011 e o Ministério da Saúde nada diz sobre o que pretende para estes serviços”, acusa José António Rocha Almeida, presidente da Associação Portuguesa de Adictologia (APA), uma organização científica não governamental criada por um grupo de profissionais ligados à intervenção nos comportamentos aditivos e dependências. Em entrevista ao Jornal Médico, o médico psiquiatra aborda algumas questões relacionadas não só com a APA, mas também com as especificidades da área. Saiba mai na edição 137 do Jornal Médico.

Jornal Médico (JM) | Foi eleito presidente da Associação Portuguesa de Adictologia em 2018. Que desafios tem encontrado nesta liderança?

José António Rocha Almeida (JARA) | Fui eleito numa lista, que integra profissionais de diferentes áreas profissionais, desde médicos, psicólogos, enfermeiros, técnicos de serviço social, fisioterapeutas, que pretendem continuar o trabalho de sucesso que a anterior direção vinha desenvolvendo. Sempre consideramos as adições como uma doença crónica do cérebro e nesse sentido, o nosso trabalho procura mostrar que as políticas e programas de prevenção, de tratamento e de reabilitação realmente funcionam.

Estes dois últimos anos representaram um enorme desafio para todos nós, na nossa vida pessoal, profissional e também científica. A pandemia por COVID-19 obrigou a mudar a forma como interagimos e a necessidade do uso de ferramentas virtuais para podermos comunicar. Não estivemos parados, mas acabou por condicionar muito o trabalho que tínhamos programado.  

JM | O que motivou a criação desta Associação?

JARA | Fundamentalmente a necessidade de reunir numa organização profissionais de diferentes áreas académicas que trabalham direta ou indiretamente na área das adições e contribuir para a dignificação do seu trabalho, independentemente da sua escola ou orientação.

Temos que ter em consideração que a problemática das adições está em permanente mudança e que a investigação científica com o contributo das Neurociências vai alargando e aprofundando o nível de conhecimentos sobre a ação e a influência das substâncias de abuso no comportamento humano. Por outro lado, a sustentabilidade dos serviços de saúde com intervenção nas adições passa por dificuldades na sua organização. E também a necessidade de intervenção nos comportamentos aditivos e nas dependências, seja a nível da prevenção, do tratamento e da reinserção e na redução de riscos e minimização de danos, que continua a ser necessária e importante para os doentes e para a sociedade. Foi com estes pressupostos que em 2010 foi criada a Associação Portuguesa de Adictologia.

JM | Quem são os sócios da APA?

JARA | Integra profissionais com atividade clínica na área das adições, médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, mas também profissionais ligados à investigação, professores universitários, sociólogos, farmacêuticos e juristas.

JM | A missão e objetivos definidos aquando da fundação, em 2010, mantêm-se ou sofreram alterações?

JARA | Entendemos que como organização científica não governamental, dedicada ao estudo dos comportamentos aditivos e das dependências nos aspetos clínico, de investigação e de formação, os objetivos traçados continuam a representar o nosso modo de intervenção nesta área.

JM | Um dos objetivos é promover atividades científicas relacionadas com comportamentos aditivos. Especificamente, que atividades são desenvolvidas e qual o público alvo?

JARA | A formação é uma área que consideramos muito importante e para isso temos uma diversidade de atividades que gostaria de salientar. Começo por referir a publicação da revista Adictologia, que teve início em 2015 e é publicada na nossa página web –  www.adictologia.com –, de acesso gratuito. Publicar uma revista não é um trabalho fácil. É preciso procurar quem estuda, quem trabalha, quem investiga e quem está disposto ao esforço de escrever e publicar. Mas, a Adictologia quer contribuir para que mais pessoas escrevam e aproveito para lançar esse desafio aos leitores desta revista.

Também organizamos vários eventos científicos, que têm tido a participação de convidados portugueses e estrangeiros. Para 2023, podemos já anunciar as Jornadas que vamos realizar em Lisboa, nos dias 19 e 20 de janeiro, no Fórum Lisboa. Será o retomar de eventos presenciais. 

Temos uma colaboração mais próxima com os colegas da Galiza e também com a Sociedade Científica de Espanha Socidrogalcohol na organização de eventos.

Desde 2011 que integramos a European Federation of Addiction Societies (EUFAS), que reúne 34 sociedades nacionais dos países da União Europeia (UE) e de alguns países que não integram a UE, sendo que todas elas se dedicam ao estudo científico e aspetos clínicos ou de saúde pública da prevenção e cuidados nas adições. Estar na EUFAS tem-nos permitido compreender e partilhar experiências do que se vai fazendo nos outros países europeus.

Propusemos à Ordem dos Médicos (OM) a criação da Competência em Adictologia Clínica, que foi aprovada pelo Conselho Nacional Executivo da OM, em 2019. Será uma forma de os serviços de saúde terem profissionais, neste caso médicos, com competências necessárias na área dos comportamentos aditivos e das dependências, providos com qualificação e experiência, para o exercício de funções clínicas.

Neste momento, estamos a preparar um plano de formação em Adictologia, que pretendemos desenvolver a partir do próximo ano. O público-alvo destes eventos são os profissionais de saúde e a população em geral.

Em todos estes encontros há participação, alguns como palestrantes, de profissionais dos cuidados de saúde primários (CSP).

JM | Qual a posição da Associação relativamente ao contributo dos profissionais dos CSP na abordagem aos comportamentos aditivos?

JARA | Os profissionais dos CSP sempre tiveram uma intervenção direta nesta área. Com o processo de descriminalização das drogas em 2000 foi criada uma rede de serviços públicos que abrange todo o País e que viria a ser complementada com estruturas privadas, comunidades terapêuticas e equipas de redução de riscos e minimização de danos. A participação dos profissionais dos CSP foi feita através da realização de períodos de consultas dos médicos dos CSP que se deslocavam aos então denominados Centros de Atendimento a Toxicodependentes (CAT). Ao mesmo tempo, os enfermeiros dos centros de saúde passaram a administrar metadona aos utentes da área de residência que o seu centro de saúde abrange. Esta intervenção permitiu uma maior sensibilidade dos profissionais para esta área, na deteção precoce de casos e posterior encaminhamento, quando necessário, e no acompanhamento de proximidade do tratamento do utente. Era uma intervenção que permitia uma maior confiança dos utentes no acompanhamento do tratamento e dos profissionais de saúde que tinham formação e que articulavam facilmente com os nossos serviços. Infelizmente, a reforma dos CSP veio acabar com esta colaboração, uma vez que os médicos passaram a não ter tempo disponível para irem fazer consultas aos nossos serviços, mantendo-se apenas a disponibilização de metadona em alguns centros de saúde. Com alguma dificuldade vamos mantendo alguma articulação fruto do conhecimento e amizade entre profissionais.

JM | E como classifica a abordagem dos comportamentos aditivos nos CSP?

JARA | Em termos de abordagem aos comportamentos aditivos, atualmente os CSP trabalham mais com os problemas ligados ao consumo de tabaco. Sabemos que alguns centros de saúde ainda mantêm a consulta para os problemas ligados ao álcool, mas esta consulta vai-se extinguindo com a saída, por mobilidade, por aposentação ou por outro motivo, dos profissionais que aí trabalham. Todos os profissionais de saúde têm a noção que os comportamentos aditivos podem trazer graves problemas para a saúde do seu doente e para a sociedade em geral pelo que, detetar e intervir numa fase inicial será uma forma de interromper um percurso que pode levar as pessoas a um consumo mais problemático no futuro. E é para esta fase inicial da doença que temos de sensibilizar os CSP para a necessidade da deteção, tratamento e referenciação quando necessária. 

É importante referir que nem todos aqueles que iniciam um consumo de álcool ou de outras drogas progridem para um quadro de dependência grave e esta quando ocorre pode acontecer após vários meses ou anos de consumo. Foi nesse sentido que a última revisão do manual de doenças mentais americano (DSM-V) passou a ter três categorias diagnósticas para as perturbações por uso de substâncias, leve, moderada e grave. A ideia foi criar critérios diagnóstico para detetar o mais cedo possível o comportamento aditivo e iniciar de imediato uma intervenção que tenha como função diminuir os danos associados ao uso da substância, reduzir os comportamentos de risco, melhorar a saúde e a função social e prevenir a progressão para uma perturbação grave. É bom lembrar que muitos destes consumos de baixo nível podem ser a principal causa de acidentes de viação, comportamentos violentos e agressões interpessoais. 

Recentemente, especialistas americanos em adições realçaram o importante papel dos CSP como primeira linha para a deteção e intervenção nos comportamentos aditivos. Deram como exemplo o que sucedeu com a diabetes tipo 2 que concentrava os doentes mais graves, com má adesão ao tratamento e com mau prognóstico. No início deste século foi criado o termo pré-diabetes e assim passou a haver uma deteção e uma intervenção precoce que permitiu motivar a população para evitar uma evolução mais grave desta doença. Ao mesmo tempo, realizaram-se campanhas de prevenção e desenvolveram-se novos medicamentos e intervenções mais adequadas para a diabetes.

Na área dos comportamentos aditivos e dependências existem testes já informatizados de aplicação fácil e não muito morosa, que permitem aos profissionais dos CSP detetar a gravidade dos comportamentos aditivos. Para o álcool, o AUDIT e para as drogas o ASSIST, por exemplo. 

JM | De um modo geral, incluindo também os CSP, a resposta que é dada aos comportamentos aditivos em Portugal é suficiente? 

JARA | Existe uma rede de serviços públicos complementada com serviços privados, comunidades terapêuticas e equipas de redução de riscos e minimização de danos, que vem dando resposta aos problemas com o consumo de substâncias seja na prevenção dos consumos, no tratamento e reinserção ou na redução de riscos e minimização de danos. O problema é que esta rede está numa indefinição do modelo organizativo desde 2011 e o Ministério da Saúde nada diz sobre o que pretende para estes serviços. Esta indefinição causa muita apreensão aos utentes e familiares que recorrem a estes serviços e aos próprios profissionais que lá trabalham. Também a relação com os CSP e serviços hospitalares é afetada, uma vez que não temos acesso às aplicações informáticas que ligam estes serviços. A comunicação entre serviços tem de ser feita por telefone, por email ou pela via do conhecimento ou amizade entre profissionais. Por outro lado, os nossos serviços vão perdendo recursos humanos que não são substituídos pelo que a capacidade de resposta aos pedidos de apoio vai diminuindo. 

No entanto, vamos tentando dar resposta, apesar das dificuldades que apontei, veja-se por exemplo o que aconteceu com a pandemia por COVID-19. Esta era uma população muito vulnerável à infeção, já que o consumo de álcool e/ou drogas afeta a função imunológica. Os serviços implementaram medidas preventivas para reduzir o risco de infeção por SARS-CoV-2 e mantiveram os cuidados de saúde à população com problemas de adição, incluindo a vacinação que decorreu seguindo as orientações da DGS. A resposta dada pelos serviços permitiu que o número de utentes infetados fosse pouco significativo e, assim, o COVID-19 na população com adição, poucos problemas trouxe aos serviços de saúde gerais. 

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.