O mentor e presidente da Porto Vascular Conference (PVC) tem todos os motivos para celebrar com os seus pares, nacionais e internacionais, naquela que foi a 10.ª edição de um evento científico cuja notoriedade se afirma e consolida a cada ano que passa. Tudo em nome de um propósito: “Passar a todos, incluindo os média e a sociedade portuguesa, a importância crucial de poder diagnosticar atempadamente e tratar precocemente uma patologia vascular periférica”, sublinha Armando Mansilha. Saiba mais na edição 135 do Jornal Médico.
Jornal Médico (JM) | A PVC assinalou uma década de existência. De que forma este evento científico se tem conseguido manter fiel à sua génese quando o concebeu?
Armando Mansilha (AM) | Desde a primeira edição, há dez anos, sempre nos posicionámos como espaço de partilha de conhecimento, numa lógica multidisciplinar, entre todos quantos interferem no processo de diagnóstico e tratamento da patologia vascular. Desde logo os especialistas de Angiologia e Cirurgia Vascular, mas também os nossos colegas de Medicina Geral e Familiar [MGF], a Enfermagem Vascular, os técnicos de diagnóstico e os nossos estudantes, futuros especialistas, nesta fase de primeiro contacto e aproximação à realidade da doença vascular. Ora, a ideia que preside ao evento mantém-se intacta: reunir no mesmo espaço e tempo diferentes sensibilidades e distintos aportes que, por junto, permitem formar conhecimento e com suficiente latitude, dado que o saber não se concentra, nem esgota, numa só pessoa, numa só área, numa só especialidade. Dez anos depois, eu diria que o que nos tem permitido permanecer fiéis a esses pressupostos tem a ver também, e muito, com o interesse, o entusiasmo e a qualidade dos participantes.
JM | Considerando as mudanças fundamentais tanto no diagnóstico como na terapêutica das doenças vasculares, percorrendo a formação especializada e os avanços tecnológicos e científicos, como se tem moldado a missão da PVC a essa evolução?
AM | O nosso compromisso é, ano após ano, acompanhar a evolução e fazer parte desse processo. Em boa verdade, ao longo destes dez anos, nas diferentes áreas temáticas relacionadas com a Cirurgia Vascular, e refletindo justamente a qualidade dos participantes, temos conseguido estar sempre sintonizados com aquilo que vão sendo as melhores práticas à escala mundial neste domínio. Isto é válido tanto para o conhecimento de base – falo, sobretudo, de fisiopatologia e biologia vascular, o que, de resto, muito beneficia os estudantes de Medicina que, em cada edição, se juntam nós – como para a esfera clínica, envolvendo aquilo que é o diagnóstico cada vez mais preciso, a partir de novos e mais sofisticados meios, do mesmo modo que as nossas atenções se viram para os avanços que nos vão permitindo ser cada vez mais eficazes e minimamente invasivos, com a vantagem de acedermos a informação cada vez mais detalhada e precisa.
Resultam daqui as condições que nos possibilitam ter uma intervenção médica e terapêutica bem-sucedida – e não somente cirúrgica. Sucede, aliás, que a maior parte dos nossos doentes é em seguimento, donde, não intervencionada do ponto de vista cirúrgico: e entre os principais benefícios, na sua maioria, está a correção dos fatores de risco. O rastreio que possamos fazer das patologias vasculares tem a seguinte função principal: rastrear para conhecer, rastrear para alterar, controlar os fatores de risco, terapêutica médica – que é, cada vez mais, eficaz, e naqueles casos em que não é suficiente, podemos adequar a intervenção cirúrgica, seja, na grande maioria dos casos, por via endovascular, dado ser minimamente invasiva e com uma recuperação muito mais benéfica para os doentes. O objetivo, neste caso, é estarmos especialmente atentos àquilo que é a evidência atual. Por outro lado, em plena era digital, é muito importante que possamos distinguir o que é realmente informação relevante e descartar o que é fake news. Neste capítulo, nós, profissionais de saúde, que produzimos e beneficiamos da evidência, não podemos deixar de alertar para a devida separação das águas, para mais quando, precisamente nesta área, há muitas pessoas que são iludidas por propostas e promessas enganadoras.
JM | Nesta hora de balanço, o que entende dever destacar por mais significativo, quantitativa e qualitativamente, da Porto Vascular Conference 2022?
AM | Enquanto sociedade global, estamos a recuperar de um período nunca visto pela maioria da população que vive atualmente no planeta Terra. Tudo isso teve repercussões aos mais diversos níveis, incluindo, neste caso, na organização de eventos científicos. Nesta dimensão, destacaria a atmosfera vivida, a circunstância de as pessoas estarem juntas outra vez, manifestando o seu interesse e a sua vontade de conviver num encontro que, não deixando de ser social, foi sobretudo científico e motivado pela partilha, o que se manifesta em auditório durante as sessões e no período de discussão que lhes sucede.
Em síntese, retenho como nota marcante do evento o interesse em participar, em ouvir, em aprender. Reportando os grandes números, tivemos cerca de 400 pessoas efetivamente em sala, registo que, para o universo vascular português, é notável. Uma referência também para as cinco sessões dedicadas exclusivamente a prémios, e para os muitos abstrats, envolvendo meia centena de trabalhos candidatos à apresentação no auditório principal, provenientes de vários países europeus, Portugal incluído.
JM | Que comentário lhe suscita o “Made in Portugal” apresentado, concretamente a quali - dade do trabalho e o nível de investigação?
AM | Uma primeira prévia para dizer que a quantidade de trabalhos recebidos levou-nos a acrescentar duas às três sessões dedicadas a prémios inicialmente programadas, o que acabou por revelar-se um dos marcos mais significativos da agenda. Sobre a participação nacional, a sua valia – sem surpresa, devo dizê-lo – resultou em vários prémios conquistados, num espelho da boa prática que temos no nosso país. Tenhamos presente o facto de seremos reconhecidos no exterior pela boa formação que proporcionamos, o que nos coloca no top 3 europeu. Diria mais, a grande maioria dos nossos candidatos que se propõe a exames europeus de cirurgia vascular passa com distinção e, muitas vezes, trazendo a gold medal.
JM | Sendo a cirurgia vascular uma área da Medicina tão específica e técnica, em que se traduz a estratégia de atratividade da PVC para, em cada ano, cativar outros profissionais de saúde e também os mais jovens?
AM | O nosso propósito é passar a todos, incluindo os média e a sociedade portuguesa, a importância crucial de poder diagnosticar atempadamente e tratar precocemente uma patologia vascular periférica. Acontece que muitas vezes são subestimados os sintomas, os sinais e a importância destas doenças. Se atentarmos nas mais recentes guidelines da ESVS [European Society for Vascular Surgery], entre as recomendações está precisamente aumentar o conhecimento público da importância das patologias. Só assim poderemos tratar mais cedo, tratar melhor e mais eficazmente, com menos custos e de modo menos agressivo. As mensagens-chave são estas.
JM | O programa consagrou duas sessões à articulação com a Medicina Geral e Familiar (MGF). Junto dos cirurgiões participantes na PVC, recolhemos impressões que nos transmitem evolução positiva e notória entre as especialidades. Que leitura faz deste tópico no contexto do evento?
AM | Este é um dos pilares mais importantes no histórico da PVC. Importa que, entre especialidades, possamos discutir amplamente todo o processo relativo ao doente vascular, seja arterial seja venoso; o que nos leva à seguinte equação: quando referenciar, como referenciar, porque referenciar. Após a referenciação, os diferentes serviços e departamentos de Angiologia e Cirurgia Vascular, em cuidados hospitalares, podem – e devem – enviar aos nossos colegas de MGF toda a informação detalhada, para que haja um seguimento conjunto e partilhado destes doentes. Tenhamos presente, na grande maioria dos casos, que estas patologias são crónicas. Razão pela qual os doentes beneficiarão sempre muito da articulação entre as duas especialidades, é facilmente perceberem que, graças a essa dinâmica de partilha, estão a ser permanentemente vigiados, observados, acompanhados e tratados pelas duas especialidades – porque é assim que deve ser.
JM | Em que áreas considera ser mais premente o update de conhecimentos em Angiologia e Cirurgia Vascular?
AM | Das grandes áreas que temos, e com desenvolvimentos muitos recentes e relevantes, devo sublinhar a doença arterial periférica, que, na maioria dos casos, está associada à aterosclerose, patologia que é sistémica. Ora a partilha com outras especialidades, designadamente a Cardiologia, a Medicina Interna, a Neurologia, tem toda a pertinência; em bom rigor, estamos a tratar de pessoas que têm uma doença com diferentes manifestações. A doença arterial periférica e, muito especialmente, o pé diabético são desafios permanentes que nos levam, em cuidados hospitalares, a estar integrados em equipa com Endocrinologia, Ortopedia, Cirurgia Geral, Cirurgia Vascular, Podologia e Enfermagem. Ainda relacionada com a aterosclerose, temos a doença carotídea, no contexto de prevenção do AVC, cujo enorme impacto no País é traduzido em custos, mobilidade e mortalidade – de resto, faz ainda parte das duas principais causas de morte em Portugal e, muito provavelmente, a patologia mais incapacitante em resultado dos eventos isquémicos.
No domínio arterial, importa continuar a apostar num bom rastreio do aneurisma da aorta abdominal, entre outros aneurismas, rastreio esse que se faz através de um método não invasivo – a ecografia –, pelo que todos os homens a partir dos 65 anos, com ou sem outros fatores de risco, devem ser avaliados; desde logo porque a identificação do aneurisma permite corrigir fatores de risco e, em alguns casos, será mesmo possível tratar atempadamente e evitar o risco de rutura (estamos a falar de uma mortalidade superior a 70%). No âmbito venoso, atenções especiais são devidas, nomeadamente, à trombose venosa profunda e à embolia pulmonar. E o mesmo é válido em relação aos novos medicamentos anticoagulantes, posicionados cada vez mais como primeira linha de atuação. Nota, igualmente, para o que tem a ver com a possibilidade de complicações pós-trombóticas e síndromes com grande impacto à distância, nos doentes, em razão de algum tipo de intervenção, mesmo do ponto de vista endotécnico.
Finalmente, devemos ter um olhar bem focalizado nas varizes, a doença venosa superficial, que constitui a patologia vascular mais frequente em termos periféricos, com implicações agudas e crónicas, e manifesto impacto na qualidade de vida dos doentes, não devendo por isso, nunca por nunca, ser reduzida a uma simples questão estética.
JM | O reconhecimento externo deste evento científico voltou a ser sublinhado pela vinda de um conjunto de representantes, ao mais alto nível, da Flebologia e Angiologia internacionais. Como vê essa afirmação cada vez mais consolidada?
AM | Tivemos uma participação muito rica nesta edição comemorativa dos dez anos da PVC. Destacaria o professor Mauro Gargiulo, na qualidade de presidente da ESVS, o professor Nabil Chakfé, presidente da Secção de Cirurgia Vascular da União Europeia de Médicos Especialistas (UEMS), o professor Sergio Gianesini, recém-eleito presidente da União Internacional de Flebologia (UIP) e o professor Pier Luigi Antignani, presidente da União Internacional de Angiologia (IUA).
Gostaria de referir, igualmente, a presença do Doutor Rodrigo Rial, presidente do Capítulo Espanhol de Flebologia e Linfologia da Sociedade Espanhola de Angiologia e Cirurgia Vascular [SEAVC]. O facto de as principais sociedades científicas internacionais terem estado connosco, representadas ao mais alto nível, muito nos honra. Acresce que a ESVS, nas suas newsletters mensais, considera a PVC um dos congressos europeus a recomendar aos seus sócios. Virem cá, estarem presentes, participarem e quererem voltar, tudo isso tem a ver com a qualidade dos cirurgiões vasculares portugueses; mas também com a forma como nós publicamos e nos posicionamos no espírito universal de produção de evidência, de recomendações e guidelines, ou seja, aquilo que é também o nosso impacto em termos qualitativos nestas sociedades. Por outro lado, o reconhecimento que a PVC constitui um espaço de discussão séria é algo que também prestigia os nossos pares internacionais.
JM | Em que medida os workshops, referência também ela marcante em cada edição da PVC, se tornam mais-valia para a execução de técnicas mais favoráveis aos doentes?
AM | Os workshops proporcionam aos mais jovens a possibilidade de manusear modelos-simuladores, o que sempre sucede noutros locais e em paralelo à discussão partilhada em plenário. São momentos propícios à experimentação de técnicas de cateterização para intervenções endovasculares, quer seja em termos de diagnóstico por ultrassom – isto é, a prática do ecoddopler – ou, ainda, através de modelos para a prática de cirurgia mais convencional (ou aberta). E nós sabemos bem da importância do treino cirúrgico em cirurgia vascular, pelo que essa possibilidade, no âmbito da PVC, representa objetivamente uma importante mais-valia para o evento.
JM | A ter de eleger a razão-chave que explica o sucesso da PVC, qual seria?
AM | Sem dúvida, a circunstância de os profissionais de saúde desta área participarem de forma empenhada e apaixonada, sentindo-se bem e gostarem de o fazer, aportando os seus conhecimentos teóricos e técnicos. Resulta daí um ambiente sem pressão, em que as pessoas estão muito à vontade para partilharem tudo quanto consideram relevante, incluindo os seus insucessos, ou não fizessem eles parte integrante da aprendizagem e da progressão.
JM | A título pessoal, o que tem retirado desta experiência de liderar um evento com a maturidade que lhe conferem as 10 edições já realizadas?
AM | Além das relações humanas, fica, sobretudo, o registo da aprendizagem clínica – tudo quanto tenho conseguido aprender com os outros. Uma questão é a organização do evento em si, a definição dos temas a tratar, os títulos das sessões, os tópicos dos palestrantes, a seleção de participantes internacionais – concretamente quem vai apresentar, ou moderar, ou discutir –, além de todas as questões de ordem logística e administrativa. Agora, em termos pessoais, eu sou um clínico, durante os dias do evento estou sentado na plateia (também) como participante, e desde ali aprendo como todos aprendem; na certeza de que aprendemos todos uns com os outros. E isso, creio bem, só faz com que sejamos melhores com os nossos doentes.
JM | Há uma data para a próxima edição da Porto Vascular Conference que possa desde já avançar?
AM | É muito provável que a 11.ª edição aconteça no verão do próximo ano. Essa é a nossa vontade e corresponde, em certa medida, ao feedback que recebemos este ano por parte de quem não hesita em dizer-nos “eu quero voltar”.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.