Nuno Jacinto: “Temos sistemas de informação que não comunicam entre os diferentes níveis de cuidados”
DATA
12/10/2022 11:07:54
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Jornal Médico
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Nuno Jacinto: “Temos sistemas de informação que não comunicam entre os diferentes níveis de cuidados”

O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, considera que o problema da articulação entre a Medicina Geral e Familiar e a área da Oncologia é o mesmo que existe em outras especialidades. “Temos sistemas de informação que não comunicam entre os diferentes níveis de cuidados e temos processos do doente que não são únicos. E, portanto, a informação fica espalhada por muitos sítios”, lamenta o dirigente da APMGF, que não poupa as críticas a um sistema que, nas suas palavras, sobrecarrega os médicos dos Cuidados de Saúde Primários com “tarefas adicionais [sobretudo, burocráticas] que ultrapassam a atividade clínica”. Esta é uma das entrevistas realizadas a propósito da "FOLLOW UP Doenças Oncológicas e Cuidados de Saúde Primários", na edição 134 do Jornal Médico

Jornal Médico (JM) | O aumento do número de sobreviventes de doença oncológica tem levantado maiores desafios aos Cuidados de Saúde Primários (CSP)?

Nuno Jacinto (NJ) | O aumento do número de sobreviventes de cancro é sempre uma boa notícia. Estes doentes serão sempre acompanhados pelo médico de família, inclusive no período em que decorre o seguimento a nível hospitalar. Haverá sempre a necessidade de acompanhar regularmente estes doentes e de vigiar não só a sua patologia oncológica, mas inclusive outras patologias concomitantes, mantendo-se as atividades preventivas, como os rastreios oncológicos, por exemplo. São doentes que exigem uma atenção particular e que colocam novos desafios à Medicina Geral e Familiar. O acompanhamento dos sobreviventes de doença oncológica faz parte das atribuições da Medicina Geral e Familiar e, claro, que pretendemos responder às necessidades em saúde específicas destes doentes.

JM | Esta transferência dos sobreviventes de cancro dos cuidados hospitalares para os Cuidados de Saúde Primários não cria maior pressão aos especialistas de Medicina Geral e Familiar?

NJ | A sobrecarga advém, sobretudo, de tarefas adicionais que são atribuídas à Medicina Geral e Familiar e que ultrapassam a nossa atividade clínica. Os médicos não deveriam ter de lidar com estas atividades paralelas e burocráticas, que em nada estão relacionadas com a atividade clínica. A nossa função é estarmos disponíveis quando os utentes precisam dos nossos cuidados. As solicitações que venham deste grupo específico de doentes [sobreviventes de doença oncológica] são lícitas e devem ser uma prioridade. Julgo que, para isso, deveríamos estar libertos de outras tarefas que, por vezes, não nos permitem dar uma resposta atempada a este e a outros grupos de doentes.

JM | A Medicina Geral e Familiar acompanha quase todo o continuum do doente oncológico, portanto, o papel desta especialidade não se esgota no acompanhamento dos sobreviventes de doença oncológica (SDO)?

NJ | A Medicina Geral e Familiar tem essa característica, acompanhando os utentes ao longo de todas as fases da sua vida, desde a pré-conceção até à morte. Temos aqui um papel fundamental, desde logo no que diz respeito à prevenção. E por prevenção entende-se a sensibilização para hábitos de vida saudáveis desde a infância até à idade adulta. Temos ainda um papel importante no rastreio, ao detetarmos doenças já existentes, mas assintomáticas, ou na deteção precoce, quando falamos de doentes que ao apresentarem sintomas numa fase inicial podem fazer-nos suspeitar de uma potencial patologia oncológica. Estamos também presentes em fases posteriores, não só quando a doença já está declarada e é acompanhada nos cuidados hospitalares, mas ainda no caso dos SDO. Acabamos por estar envolvidos em todos os momentos da doença oncológica, ao longo deste continuum, desde a prevenção até ao tratamento e seguimento.

JM | No âmbito dos cuidados de saúde oncológicos deveria haver uma maior articulação entre os serviços hospitalares e os CSP? Essa colaboração já acontece de forma espontânea?

NJ | Essa colaboração vai acontecendo dentro do possível, tendo em conta as realidades dos vários locais. O problema da articulação entre a MGF e a Oncologia é o que temos com outras especialidades. Temos sistemas de informação que não comunicam entre os diferentes níveis de cuidados e temos processos do doente que não são únicos. E, portanto, a informação fica espalhada por muitos sítios. Temos também algumas barreiras, como a incapacidade de interligação com centros convencionados para realização de exames complementares de diagnóstico, que por vezes têm de ser pedidos foram do âmbito hospitalar. A questão da articulação é um cavalo de batalha já antigo. Vamos resolvendo algumas questões informalmente, através do contacto com os colegas por meio de canais alternativos. Mas a lógica deveria ser outra. Deveriam existir canais de comunicação bidirecional bem estabelecidos e sistemas de informação mais ágeis que nos ajudassem e nos facilitassem na resolução dos problemas. A articulação já vai acontecendo, mas há por parte de todos os intervenientes o reconhecimento de que se trata de uma área que precisa de evoluir bastante.

JM | Na prática, os sistemas de informação não permitem a partilha de informação entre os diferentes níveis de cuidados…

NJ | O problema é que os processos de um doente são muito compartimentados. Para consultar a informação relativa a um doente - quando tal e possível - tenho de ler num local o que escreveu o oncologista, abrir uma outra janela para ver o que indicou o cirurgião, etc... A integração da informação num único sistema não é ainda a desejável. O processo deveria ser único e deveria acompanhar o doente, independentemente da instituição de saúde, pública ou privada, onde está a ser seguido. Não é o que acontece e esta dispersão da informação dificulta muitíssimo a interligação de cuidados e a comunicação de todos os que estão envolvidos no tratamento destes doentes.

JM | Qual o modelo de funcionamento que é defendido pela Medicina Geral e Familiar?

NJ | Deveriam existir canais de comunicação e de informação que facilitem o seguimento dos doentes, sem questões burocráticas que dificultem o trabalho dos médicos nos diferentes níveis de cuidados. Há, ainda assim, várias tentativas de ambas as partes para uma melhor articulação de cuidados, seja com a realização de reuniões conjuntas, seja pela criação de protocolos e critérios de referenciação hospitalar, por exemplo. Este trabalho tem sido feito, mas graças ao interesse e dedicação dos profissionais envolvidos. Aliás, quando temos um doente com um diagnóstico de patologia oncológica, arranjamos forma de contactar os colegas a nível hospitalar, por vezes até contornamos os canais oficiais pré-estabelecidos. E o contrário também acontece por parte dos médicos que operam a nível hospitalar. Dentro das limitações existentes têm havido progressos. Falta, porém, resolver estas questões, já há muito conhecidas e que os profissionais já identificaram, mas que até agora ainda não foram alvo de atenção por parte da tutela. Importa, contudo, ouvir quem está no terreno, já que desse modo serão encontradas as soluções mais adequadas para resolver estas situações.

JM | A propósito dos sobreviventes de cancro, a SPO elaborou guidelines dirigidas à MGF, para orientar o seguimento nos Cuidados de Saúde Primários. O aumento do número de sobreviventes de cancro justifica a elaboração de um documento desta natureza?

NJ | As guidelines são documentos orientadores que permitem padronizar a nossa atuação, sem que haja uma grande disparidade entre diferentes instituições de saúde. A Medicina Geral e Familiar é uma especialidade generalista e, portanto, um documento como este, que nos ajude a sistematizar o raciocínio e que nos relembra pontos a que devemos estar atentos em cada momento, é claramente útil para a nossa atuação, porque não só melhora a qualidade da prestação de cuidados, como facilita o nosso trabalho. Este documento alerta para alguns aspetos que devemos valorizar durante o seguimento de sobreviventes de doença oncológico, como as toxicidades da terapêutica, a necessidade de protocolos de seguimento, com indicação dos exames diagnóstico que tenham de ser realizados, os cuidados com outras terapêuticas concomitantes e os riscos de interações com a doença oncológica ou com o tratamento oncológico. Mas não nos podemos esquecer que a nossa atuação não se resume a guidelines e que, no seguimento dos sobreviventes de cancro, também temos como atribuições da especialidade de Medicina Geral e Familiar a vigilância de outras doenças.

JM | A SPO conduziu um questionário, dirigido a especialistas de MGF, que procura estudar os desafios destes profissionais no seguimento dos sobreviventes de cancro. Já existem resultados deste questionário?

NJ | Não conheço as conclusões deste inquérito, porque não tivemos acesso aos resultados. Este questionário serve, contudo, para perceber quais as dificuldades dos especialistas de MGF. É importante que a SPO tenha tido essa preocupação. Conhecendo as dificuldades, mais rapidamente são apontadas soluções ou documentos de orientação que estejam alinhados com o nosso contexto de prática clínica.

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
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