Joana Bordalo e Sá, além da atividade clínica como oncologista médica no Instituto Português de Oncologia do Porto (IPO), dedica-se à investigação na área dos sobreviventes de doença oncológica (SDO). Segundo avançou a especialista, em resposta ao Jornal Médico, “o número de sobreviventes de cancro tem vindo a aumentar em Portugal”, estimando-se que, atualmente, haja cerca de meio milhão de SDO no nosso país. Esta é uma entrevista inserida no “FOLLOW UP Doenças Oncológicas e Cuidados de Saúde Primários” na edição 134 do Jornal Médico.
Jornal Médico (JM) | Quais os motivos associados ao aumento do número de sobreviventes de cancro?
Joana Bordalo e Sá (JBS) | O envelhecimento da população, as melhorias na implementação e operacionalização do rastreio das neoplasias da mama, cólon e colo do útero, além do aumento da sobrevivência global após o tratamento definitivo do cancro, têm contribuído para o aumento de sobreviventes de cancro.
JM | A alta hospitalar e a transferência dos doentes para os CSP acontecem geralmente ao final de quanto tempo de seguimento nos centros oncológicos?
JBS | Habitualmente ao fim de cinco anos da data do tratamento com intenção curativa. No cancro da mama, depois de finalizados os tratamentos adjuvantes, a alta hospitalar pode exceder os cinco anos, uma vez que há situações em que as utentes podem ter indicação até 10 anos de hormonoterapia.
JM | Apesar da alta hospitalar, os SDO continuam a exigir uma vigilância e monitorização regulares. Quais as componentes de seguimento dos sobreviventes de cancro, fora do âmbito hospitalar, a que a Medicina Geral e Familiar poderá dar resposta?
JBS | Após a alta hospitalar os sobreviventes de cancro são transferidos para os Cuidados de Saúde Primários (CSP), a quem cabe dar continuidade ao seguimento clínico. No seguimento, seja durante a fase hospitalar ou depois da transferência para os CSP, devem ser reunidos esforços no sentido da vigilância da recidiva ou de neoplasias secundárias, feita a monitorização e intervenção de efeitos físicos e psicológicos a longo prazo e tardios, orientação das comorbilidades, sem esquecer os cuidados preventivos e primários de rotina. Além disso, é importante que seja feita a avaliação social com questões relacionadas a emprego, seguro e deficiência. A coordenação entre os centros oncológicos e os CSP é fundamental para garantir que todas as necessidades de saúde dos sobreviventes de cancro são atendidas.
JM | De que modo deverá ocorrer a coordenação entre os centros oncológicos e Cuidados de Saúde Primários, de forma a assegurar a continuidade de cuidados dos sobreviventes de doença oncológica?
JBS | Presentemente, os CSP e os centros oncológicos ainda não têm esta coordenação implementada, com profissionais (médicos e enfermeiros) com tempo dedicado. Se um dia for possível operacionalizar, até se poderiam transferir os sobreviventes de cancro mais precocemente para os CSP.
JM | Quais as vantagens de manter o seguimento regular nos CSP dos sobreviventes de doença oncológica, para além de maior proximidade ao domicílio do doente?
JBS | Os CSP conseguem fazer um seguimento global dos sobreviventes de cancro, sendo que este não se esgota apenas na doença oncológica prévia. Um estudo- -piloto, de 2013, no qual participei como autora, apesar de pequeno, concluiu que a esmagadora maioria das sobreviventes de cancro da mama, que foram transferidas para os CSP, faziam o seguimento adequado, cumprindo com a recomendação de mamografia anual e, acima de tudo, estavam satisfeitas com o seguimento pelos seus médicos de família.
JM | A transferência dos doentes para um seguimento nos CSP, concretamente os sobreviventes de cancro, é uma estratégia que permite responder à falta de recursos especializados em Oncologia?
JBS | A coordenação entre os CSP e os centros oncológicos, com canais de comunicação próprios entre ambas as partes, permitiria fazer essa transferência mais precocemente. Estudos internacionais concluíram que o seguimento intensivo nos centros oncológicos, após tratamento curativo, não traz qualquer benefício aos sobreviventes, pois não foram verificadas diferenças significativas na taxa de recidiva, na sobrevivência global, nos atrasos do diagnóstico ou no grau de satisfação. É fundamental que, em primeiro lugar, haja vontade em construir esta coordenação entre os centros oncológicos e os CSP, focados nos sobreviventes de cancro, com profissionais com tempo dedicado. Só deste modo seria possível estabelecer e operacionalizar a coordenação e a comunicação entre os centros oncológicos e os CSP.
JM | Um sobrevivente de cancro é transferido para os CSP, mas mantém a ligação aos centros oncológicos sempre que necessário…
JBS | Um sobrevivente de cancro, que já teve alta hospitalar, a quem é diagnosticado uma recidiva no seguimento nos CSP, é habitualmente readmitido na unidade hospitalar de forma célere, depois de ser solicitado pelos CSP. Quando há sequelas importantes aos tratamentos, que hoje em dia são cada vez mais raras, esses sobreviventes habitualmente mantêm o seguimento no centro oncológico. Quando o hospital identifica algum aspeto que pode ser mais bem abordado nos CSP, é habitual ser enviada informação escrita. No entanto, seria importante que as equipas hospitalares e dos CSP pudessem funcionar em rede de forma mais expedita, com canais de comunicação facilitados e que houvesse uma coordenação competente com objetivos bem definidos. Mas para isso é necessário que os profissionais de saúde de ambos os setores tenham formação, e que lhes seja alocado tempo específico para se dedica[1]rem aos sobreviventes de cancro, em número crescente em Portugal.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.