Fernando Mota: “Covid-19 alterou paradigma do tratamento da psoríase”
DATA
13/10/2020 16:46:33
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Jornal Médico
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Fernando Mota: “Covid-19 alterou paradigma do tratamento da psoríase”

A fisiopatologia, o tratamento e o papel da Medicina Geral e Familiar na gestão da psoríase estiveram em destaque num simpósio online promovido pela LEO Pharma, no âmbito do 37.º ENMGF, a 26 de setembro. Em entrevista ao Jornal Médico, Fernando Mota, dermatologista do Hospital da Senhora da Oliveira (Guimarães) e orador convidado da sessão, salientou a importância da consulta de teledermatologia como ponte entre ambas as especialidades médicas. 

JORNAL MÉDICO (JM) | Qual a importância da articulação entre a Medicina Geral e Familiar (MGF) e a Dermatologia, muito em particular no acompanhamento do doente com psoríase?

FERNANDO MOTA (FM) | É fundamental. Tenho experiência de consulta de teledermatologia em articulação com a MGF e considero este modelo uma ferramenta importante de contacto com os médicos de família (MF), que nos permite fazer um diagnóstico mais atempado de algumas situações. Essa é muitas vezes a grande dificuldade.

Permite também perceber quais as doenças que, na sua forma ligeira, podem ser acompanhadas na MGF. É o caso da psoríase, em que a referenciação se prende sobretudo com a gravidade da doença. Isto é, doentes com uma psoríase ligeira, que possam ser tratados com terapêuticas exclusivamente tópicas, podem ser acompanhados e controlados pelo MF. Já os doentes com uma psoríase moderada a grave, e com uma maior extensão de pele afetada, exigem terapêuticas sistémicas, biológicas ou fototerapia (em meio hospitalar) e a teledermatologia é útil na identificação dessa necessidade de referenciação.

 

JM | Uma das principais “queixas” dos MF é a formação pré e pós-graduada em Dermatologia é escassa. Como se pode colmatar essa lacuna?

FM | Essa é, de facto, uma realidade e não é só dos MF, mas de todos os médicos não dermatologistas. A Dermatologia é uma área muito específica dentro da Medicina e a formação ao nível do pré-graduado é efetivamente muito escassa, habitualmente, dura apenas duas semanas. Durante o internato, os colegas de MGF fazem um estágio muito curto em Dermatologia, sendo que este é o especialista a que os doentes – não só com psoríase, mas com outras dermatoses – recorrem em primeiro lugar.

Assim sendo, a MGF tem, por vezes, dificuldade em dar resposta a estes doentes e é aí que a teledermatologia pode ter um papel facilitador na gestão mais célere dos casos, seja pelo diagnóstico ou pela referenciação mais atempados, sem que o doente esteja à espera da consulta de Dermatologia, cuja lista de espera é muitas vezes demorada.

 

JM | A psoríase é muito mais do que uma doença de pele e o doente psoriático, nomeadamente nos casos mais graves, exige cuidados multidisciplinares. Quais são as comorbilidades mais comuns nestes doentes?

FM | A mais comum e mais importante comorbilidade na psoríase é a obesidade, tendo um grande impacto não só na gravidade da doença, mas também na resposta ao tratamento. Há casos de doentes que só devido à perda de peso apresentam melhoras ao nível da sua psoríase.

Além da obesidade, há a considerar as comorbilidades cardiovasculares, associadas ao que habitualmente se designa por síndrome metabólica – hipertensão arterial, dislipidemia, diabetes –, mas também a cardiopatia isquémica.

A não esquecer, no conjunto das comorbilidades mais comuns à psoríase, as comorbilidades psiquiátricas, como a depressão. Amiúde, o doente psoriático sofre de distúrbios de ansiedade ou de perturbações depressivas devido à sua doença.

Embora possa ser considerada uma doença à parte, há ainda a assinalar como comorbilidade a artrite psoriática, que consiste no comprometimento articular. O diagnóstico precoce e atempado desta entidade é crucial, de forma a travar o seu avanço e a prevenir sequelas a este nível. A artrite psoriática deve ser acompanhada na Medicina Interna ou na Reumatologia, enquanto as restantes comorbilidades da psoríase devem ser controladas pelo especialista de MGF.

 

JM | Que impacto está a ter a pandemia no acompanhamento do doente com psoríase?

FM | Na fase de confinamento, o impacto foi grande. Tivemos de passar a fazer consultas não presenciais a todos os doentes. O acesso aos serviços diminuiu drasticamente e, consequentemente, o acesso às terapêuticas.

No início da pandemia, quando ainda muito pouco se sabia sobre a infeção pelo novo coronavírus, houve muitos doentes que tiveram de adiar a terapêutica [biológica] devido a toda a incerteza em torno de potenciais efeitos nefastos no caso de infeção pelo SARS-CoV-2. Quando começaram a aparecer dados sobre doentes a fazer terapêuticas biológicas e que tinham tido Covid-19, sem se ter verificado um pior desfecho da Covid relativamente a quem não fazia estas terapêuticas, estes tratamentos foram sendo retomados.

Diria mesmo que a pandemia veio alterar o paradigma do tratamento da psoríase, na medida em que, à luz dos dados que foram surgindo, atualmente temos recomendações para “saltar” os fármacos sistémicos tradicionais por estes terem um efeito imunossupressor mais acentuado, e avançar para as terapêuticas biológicas.

Penso que as grandes limitações no acesso aos cuidados de saúde, decorrentes da atual pandemia, têm-se verificado sobretudo nos cuidados de saúde primários, o que ao nível da gestão das comorbilidades do doente psoriático pode ser problemático.

Neste momento, o acesso às consultas hospitalares já está praticamente regularizado, dentro do que é o panorama da Dermatologia. É a MGF quem mais está a sofrer o impacto ao nível da acessibilidade dos doentes e esta tem sido uma queixa recorrente dos doentes na minha consulta.

A pandemia já está de facto a ter um impacto muito grande nos outcomes em saúde extra-Covid.

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Editorial | Joana Torres
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