JORNAL MÉDICO (JM) | Como avalia o impacto da pandemia, nomeadamente durante o Estado de Emergência, na prestação de cuidados aos doentes com patologia dermatológica?
MIGUEL PERES CORREIA (MPC) | Creio que como na maioria das doenças não-Covid houve falhas graves no apoio aos doentes, por vezes falhas muito graves.
Os dermatologistas, na sua grande maioria, mantiveram-se disponíveis para tratar os doentes mais graves durante o Estado de Emergência, no entanto a mensagem que foi transmitida à população levou a um enorme receio de sair de casa, de ir a hospital ou clínica, ou mesmo ao consultório. Acresce que houve unidades de saúde onde foram criados constrangimentos que impediram o acesso dos doentes.
A consequência é evidente: cancros de pele que ficaram por diagnosticar e tratar, doenças inflamatórias que agudizaram carecendo de tratamento mais agressivo, entre outras situações. No fundo, o cenário que existe quando há carência generalizada de cuidados médicos.
Em julho, estima-se ter havido 26% de incremento da mortalidade em relação ao ano passado, sendo que apenas 1,5% será relacionado com a Covid-19.
A lição deve ser aprendida para situações futuras.
JM | Sempre foi uma voz crítica da teleconsulta em Dermatologia, mas este acabou por ser um modelo adotado durante a pandemia em várias especialidades médicas. Recorreu a este modelo durante a pandemia? Como alternativa neste contexto específico que mais-valias e desvantagens lhe reconhece?
MPC | A teleconsulta é um excelente complemento da consulta presencial e permite um acompanhamento próximo de doentes que conhecemos. Ajuda ainda na triagem, permitindo que seja dada prioridade aos doentes que aparentam sofrer de situações mais graves.
Neste âmbito, a teledermatologia é da maior utilidade e é método que uso desde que existe a possibilidade de troca de e-mails com imagem anexa. Desde há anos que o meu contacto à distância com doentes é feito deste modo com enorme utilidade. Faz parte da minha rotina diária a interação por meios digitais com cerca de cem doentes por dia, o que corresponde a várias horas por dia.
Exatamente por ter considerável experiência na matéria conheço bem os limites da telemedicina. A prática médica é ato muito humano, no qual o contacto médico-doente constitui parte fundamental. Um médico experiente ao olhar para um doente, ao ouvi-lo falar, ao ver como se move e observando a sua mímica, obtém informação riquíssima e fundamental na boa prática clínica. A visão humana associada ao cérebro é muito mais poderosa que qualquer dispositivo de inteligência artificial.
Um doente da pele não é uma imagem da sua pele.
A Medicina é muito mais que o cumprir protocolos. Quem não perceber isso nunca praticará Medicina de excelência. Medicina que não é excelente em termos humanos não é, nunca será, Medicina de excelência.
E não é esse o tipo de Medicina pelo qual nos batemos? Alguém acredita que a Medicina que olha para o algoritmo como o bezerro de ouro pode ser boa Medicina?
Posto em termos muito simples, se estivesse gravemente doente preferiria ser tratada por um médico muito sabedor de algoritmos, mas sem experiência clínica ou por um médico experiente que já ajudou muitas pessoas na sua situação? Creio que a resposta é óbvia.
Aliás, esta pandemia destruiu por completo o mito da inteligência artificial como a nova Medicina de excelência. No momento em que foi preciso evitar que a vida de médicos fosse posta em risco no contacto próximo com doentes, onde estiveram as máquinas de inteligência artificial apoiadas nos algoritmos? Foram médicos humanos a ajudar doentes humanos.
JM | Doenças do foro dermatológico – como a psoríase ou a dermatite atópica – afetam bastante a qualidade de vida das pessoas que dela sofrem. Considera que o confinamento e as medidas de proteção contra o vírus (uso de máscara e desinfeção frequente das mãos com soluções de álcool gel) tiveram um papel no agravamento dos sintomas?
MPC | Todas as doenças da pele afetam fortemente a qualidade de vida das pessoas.
De facto, o impacto global da doença dermatológica é enorme, já que afeta cerca de 1/5 da população mundial e é responsável por cerca de 25% de todos os tratamentos prescritos no mundo, tal como é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde.
Todas as doenças inflamatórias agravam com a tensão emocional. Foi o caso. Acrescido da já referida falência dos cuidados médicos devida ao confinamento.
O uso (aconselhado) da máscara suscitou o aparecimento de doenças de novo ou determinou o agravamento de doenças pré-existentes da pele. Incluíram-se doença da pele do rosto, como as inflamatórias (acne, rosácea, dermite perioral, dermite seborreica, dermite atópica da face e pescoço, dermites alérgicas ou irritativas de contacto). O recurso aconselhado a lavagens e desinfeções frequentes das mãos também tiveram um impacto, nomeadamente nas dermites ou eczemas, altamente impactantes ou invalidantes.
JM | Em fase pós-Estado de Emergência, quais eram as principais queixas dos doentes que procuraram o dermatologista?
MPC | De acordo com a minha experiência pessoal – porque desconheço qualquer estudo que me possa dar uma visão geral – foi como que o abrir de barragem na qual toda a patologia dermatológica tivesse ficado retida. Os doentes, mal tiveram oportunidade de ter ajuda presencial procuraram-na. Doentes de todas as áreas da Dermatologia: do cancro da pele, das doenças alérgicas, inflamatórias, infeciosas, autoimunes, reações a medicamentos, doenças degenerativas, metabólicas e dermocosméticas.
Tudo tinha ficado como que suspenso, retido, e agora há um procurar por em dia o que tinha ficado para trás.
JM | Que impacto a curto/médio prazo poderá vir a ter esta situação no tratamento das patologias do foro da Dermatovenereologia?
MPC | Uma procura sem precedentes de consultas e tratamentos. Pelo que não foi feito e pela insatisfação em número grande casos no que se tentou, com êxito reduzido, tratar por telemedicina.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.