O fenómeno da violência na Saúde “terá de levar a uma reflexão profunda da sociedade”
DATA
08/04/2020 14:56:05
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Jornal Médico
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O fenómeno da violência na Saúde “terá de levar a uma reflexão profunda da sociedade”

Assumindo diversas formas, a violência no setor da saúde é um fenómeno cada vez mais sinalizado em Portugal e pode afetar qualquer trabalhador, em qualquer local de trabalho. Por se considerar que a resposta atual é pouco satisfatória, foi desenvolvido o Plano de Ação para a Prevenção da Violência no Setor da Saúde (PAPVSS), inserido no Programa Nacional de Prevenção da Violência no Ciclo de Vida, da Direção-Geral da Saúde (DGS). O Jornal Médico conversou com o coordenador do PAPVSS e especialista em Medicina Geral e Familiar (MGF), André Biscaia, procurando perceber as linhas orientadoras do documento recentemente apresentado e atualmente em fase de discussão pública.

JORNAL MÉDICO (JM) | Os cuidados de saúde possuem características que podem tornar o ambiente mais propenso à violência. A mudança de paradigma relativa ao papel do utente e à relação médico-doente pode deixar o profissional de saúde mais “exposto”?

ANDRÉ BISCAIA (AB) | Atividades que impliquem lidar com pessoas em sofrimento ou que estejam associadas a serviços como a certificação de uma incapacidade ou atestados – capazes de habilitar o indivíduo a condição ou benefício social a que julgue ter direito – podem ser desencadeadoras de tensão. Quando não é bem gerida – e, muitas vezes, mesmo quando é – pode resultar em frustração, principalmente se há uma expetativa que não é satisfeita. Por sua vez, a dificuldade em lidar com a frustração pode resultar em conflito, incluindo violência física ou psicológica.

A meu ver, o facto de as pessoas estarem mais cientes dos seus direitos e, portanto, mais reivindicativas em termos gerais, não é um problema. Pode, sim, fazer parte da solução. No PAPVSS, prevemos a necessidade de aumentar a literacia em saúde, que é algo que se faz a diversos níveis – desde a infância, até ao trabalho com as famílias no centro de saúde – e que contribui para diminuir o risco de violência. Mais interessante do que o atendimento ao “doente”, “utente” ou “consumidor”, é o atendimento ao cidadão, consciente dos direitos e deveres e do bem público.

O que tem de ser muito claro é que, quando há uma expetativa incorrespondida ou no caso de a pessoa não estar satisfeita com o serviço, existe o direito à reclamação e o direito a que essa reclamação seja analisada e respondida, não podendo haver, nunca, lugar à violência.

JM | Este fenómeno de violência no setor da Saúde é complexo, decorrendo de um conjunto variável de determinantes. Há algum mais proeminente no caso português?

AB | A frequência deste problema generalizado em Portugal é muito parecida com a de outros países. É um fenómeno universal e não é de agora. Segundo um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Internacional do Trabalho elaborado em vários países, cuja equipa integrei há cerca de 20 anos, 50% dos profissionais de saúde tinha sofrido um episódio de violência nos 12 meses anteriores. Embora a verbal fosse a mais frequente, é de referir que surgia todo o tipo de violência, sendo a maior parte perpetrada por um utente ou familiar, e que esta atingia todo o tipo de instituição ou profissional.

Por esse motivo e por haver variações conforme as instituições e as especificidades locais do nosso país, não achamos que haja um fator especificamente português que faça aumentar este tipo de casos. Além do mais, apesar de os serviços em Saúde possuírem características potenciadoras de tensão, a violência não é um problema exclusivo do setor. Mesmo na Suécia – cuja sociedade é vista como mais evoluída em termos sociais e onde os serviços públicos funcionam reconhecidamente bem – há violência, sendo a Saúde e a Segurança Social os setores que registam mais casos, mais do que na polícia ou nas prisões…

JM | Os dados do Sistema Nacional de Notificação de Incidentes (Notifica) apontam para um aumento de notificações em Portugal. Em 2019, foram 995. Como se explica essa subida?

AB | É uma notificação voluntária e informal nesta área da violência que tenta caracterizar melhor o fenómeno. É de esperar que, à medida que o serviço vai sendo mais conhecido, aumente a notificação. Contudo, temos de fazer outro tipo de estudos e de monitorização para ter a certeza da evolução do fenómeno.

JM | No PAPVSS afirma-se que há um conhecimento deficitário dos procedimentos de notificação. Há subnotificação em Portugal e, em caso afirmativo, será justificada apenas pela falta de conhecimento?

AB | O Observatório para a Prevenção da Violência no Setor da Saúde procurará estudar melhor o fenómeno através do cruzamento de dados e diferentes fontes de informação, almejando um retrato o mais próximo da realidade possível. No entanto, sabemos que, por fatores diversos ligados a medo, receio de exposição, relação profissional-utente, descrédito na consequência dos processos, muitos profissionais não reportam este tipo de situações. Há ainda aspetos mais delicados, quando a violência ocorre no contexto das relações de trabalho, que pode ser muito desestruturante.

Importa também trabalhar sobre um aspeto essencial que diz respeito àquilo que consideramos violência, pois um pouco por toda a sociedade há tendência para alguma naturalização de determinadas práticas violentas, como o assédio e a violência verbal. Quem sofre desta situação pode ficar, a longo prazo, com marcas profundas que afetam muito gravemente a capacidade de trabalho e até a capacidade de ter uma vida pessoal satisfatória. É necessário avaliar as raízes do verdadeiro problema e ter uma abordagem preventiva.

Segundo a OMS, este fenómeno na Saúde deve ser entendido de uma forma mais lata, relacionando-se com outros tipos de violência, onde fatores de ordem individual, relacional, social e macro são variáveis e cumulativos e podem representar situações de risco ou de proteção. Neste âmbito, a literacia ocupa um papel primordial. 

JM | O PAPVSS procura atuar em várias frentes. Como se articula esta ação conjunta?

AB | O objetivo global é refletir sobre a estrutura e o funcionamento das unidades de modo a que a sua qualidade seja preventiva de conflitos e redutora da violência no maior grau possível, contemplando uma série de dimensões, em consonância com princípios recentemente enunciados na Conferência Internacional do Trabalho.

Para isso, tem de haver uma abordagem global e participativa, com um foco muito forte na prevenção. Para melhor alcançar os objetivos, o PAPVSS enquadra o problema numa perspetiva nacional, mas promove as adaptações e interpretações nos níveis regional, institucional e local, com planos regionais, por cada instituição, serviço ou unidade funcional e a construção de estratégias para as equipas no terreno. Temos a convicção de que será esta aplicação local que fará a diferença, por ser a esse nível que as medidas têm de se tornar efetivas.

O primeiro passo terá de ser sempre a avaliação do risco de violência em cada local, em cada posto de trabalho, atendendo às características especiais, à cultura organizacional e ao conhecimento da população e dos recursos existentes. Paralelamente, terá de haver formação, que deverá chegar – em cascata – a todos.

Destaco ainda as "vias verdes" jurídica, clínica e de apoio em saúde mental que estão a ser otimizadas para dar apoio às vítimas de violência e o serviço da SPMS “SNS24 cuida de todos" – já em funcionamento – para dar primeiros socorros psicológicos aos profissionais de saúde nas primeiras horas após o episódio de violência.

JM | O plano assenta em cinco eixos – Observatório de Violência no Setor da Saúde, Cultura Organizacional, Comunicação, Segurança e Ética. Destacaria algum?

AB | O da Ética, por ser o eixo mais profundo, aquele que está no centro de todas as decisões relacionadas com a abordagem da problemática e das respostas que têm de ser implementadas. Toda a atuação tem de ser humanizada, não discriminatória, sensível às especificidades, sem ferir princípios e valores fundamentais. Não podemos ter uma abordagem da violência que seja ela própria violenta – é estar a apagar o fogo com gasolina.

JM | No período de 2018 a 2019, 88,5% das USF portuguesas tinham registado 13 casos de violência contra profissionais do setor da saúde nos últimos 12 meses. Qual é a situação particular do médico de família?

AB | A Medicina Geral e Familiar (MGF) é a área em que há mais contatos com a população – só por isso o risco seria maior –, num ambiente mais próximo, para o bem e para o mal, onde se lida com o sofrimento no dia a dia e ao longo da vida. Não é o contacto mais pontual, que ocorre nos cuidados hospitalares. Também trata das tais situações que podem gerar expetativas não satisfeitas e descontentamento associado, estando o ambiente dissuasor menos presente.

JM | Foi solicitado que estes crimes sejam enquadrados como crimes de prevenção e investigação prioritária, no âmbito da Lei de Política Criminal. Que impacto terá esta mudança?

AB | Um episódio de violência é um acidente de trabalho e um crime a ser denunciado junto das entidades judiciárias. Posto isto, e dada a importância atribuída ao fenómeno a nível social, acreditamos que poderá ter um efeito dissuasor quanto aos fatores que contribuem para a violência.

Esta medida, à semelhança do aumento da segurança ou da melhoria dos circuitos, é algo que podemos utilizar para diminuir a violência na Saúde a curto prazo. Não obstante, este fenómeno terá de levar a uma reflexão profunda da sociedade sobre a existência de uma cultura de violência ou de não violência.

Por isso, realço que a única solução é tratar este problema com uma abordagem de ciclo de vida. Há medidas – tudo o que seja normas e leis – que só terão impacto daqui a cinco, dez anos. Já mudanças a nível cultural e educacional só terão efeitos à distância de uma ou duas gerações. Este fenómeno tem de começar a ser abordado de forma cada vez mais preventiva, salutogénica e integrada nas diversas fases e contextos de vida, na infância/juventude, junto das famílias, nas escolas e no trabalho.

 

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.