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Rui Tato Marinho: “O crescimento da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia tem sido sustentado no tempo, pé ante pé”

A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG) acaba de atingir o marco dos 60 anos. Por entre celebrações, o presidente da SPG e diretor do Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do Hospital de Santa Maria, Rui Tato Marinho, partilha, em entrevista ao Jornal Médico, algumas das principais mudanças no panorama da saúde, em geral, e da especialidade, em particular. Sublinha ainda os feitos, desafios e objetivos da associação científica que, com peso institucional, se quer moderna.

JORNAL MÉDICO (JM) | Afirmou em diversas ocasiões que a Gastrenterologia portuguesa é uma das melhores do mundo. Qual a dimensão e o papel da Gastrenterologia atualmente?

RUI TATO MARINHO (RTM) | A Gastrenterologia é uma especialidade muito completa: abrange a morte e o ato de salvar vidas – a relação humana é muito interessante nesse contexto –; inclui muitas situações de emergência, de que os médicos também gostam; trata muitos cancros, onde também sentimos que podemos ser úteis à pessoa; e aplica imensa tecnologia, uma aliada poderosíssima da Medicina. Todos os conceitos técnicos de que se fala – big data, deep learning, machine learning, inteligência artificial – aparecem na Gastrenterologia, não só em dispositivos ou aparelhos que se utilizam, mas também na terapêutica farmacológica, que é cada vez mais de precisão e resulta deste forte desenvolvimento tecnológico.

Também tem sido uma especialidade de sucesso no que concerne à investigação, seja na descoberta de doenças ao longo destes anos, seja na inovação e na cura para imensas patologias. As hepatites, por exemplo, têm, hoje em dia, uma abordagem completamente diferente. Descobriu-se a cura da hepatite C, a vacina da hepatite B, medicamentos para a hepatite B, descobriu-se o vírus E, o vírus delta…

Ao abranger cerca de doze órgãos ou estruturas, a Gastrenterologia torna-se num puzzle complexo. Para além disso, é de referir que tem um conteúdo humano muito forte: 500 gastrenterologistas, com um parque endoscópico muito bom e com médicos que são os “campeões” em colonoscopia… Dos melhores do mundo.

Os alunos de Medicina que saem agora do curso são melhores do que nós na medida em que estão melhor preparados, até do ponto de vista humano. Não desmerecendo os outros, a Gastrenterologia vive dos melhores e mais bem classificados, que, na grande maioria dos casos, têm provado ser pessoas com um potencial muito elevado e muito competentes.

JM | Qual tem sido o contributo da SPG para esse feito?

RTM | A SPG tem contribuído de maneira fulcral. E cada vez mais relativamente ao desenvolvimento científico, tanto ao nível da investigação, como da divulgação. Um dos nossos temas fortes do momento é a qualidade, onde encontramos desafios completamente diferentes, consoante as experiências. O facto de termos uma atividade que junta pessoas dos vários pontos do país tem sido de uma riqueza fantástica. Possibilita conhecer os nossos colegas, partilhar vivências diversas, promover reuniões científicas com discussão profícua. É um trabalho conjunto que tem permitido sermos cada vez melhores. Os congressos nacionais são extremamente importantes nesse sentido, até porque também é nesse contexto que os internos – cheios de vontade de participar – e os especialistas entram em contato uns com os outros, partilham experiências, divulgam trabalhos científicos, constroem currículo...

A SPG extravasa as fronteiras nacionais, promovendo contactos internacionais desde o início. Muitos dos primeiros presidentes tiveram contacto com o estrangeiro porque estagiaram na Alemanha, na África do Sul, entre outros países, desenvolvendo muito a Gastrenterologia portuguesa. Agora, temos portugueses em cargos de várias estruturas internacionais e a comunicação com outros países é hoje muito mais fácil e é uma mais-valia em termos de experiência, network e benchmarking. Além de facilitar a investigação científica, por exemplo, quanto à participação em ensaios clínicos à escala global e à publicação em revistas científicas de prestígio internacional. Sobre isto, destaca-se o facto de a publicação em revistas científicas internacionais, que está entre os aspetos mais relevantes para o currículo, ser feita através da revista da SPG, que também tem feito o seu caminho de sucesso.

JM | Na sua perspetiva, quais são as maiores conquistas da SPG e que marcos da Gastrenterologia destaca?

RTM | O crescimento da Sociedade, já com mais de 800 sócios, tem sido sustentado no tempo, pé ante pé. Uma das maiores conquistas é termos sido reconhecidos como uma Sociedade científica de utilidade pública sem fins lucrativos e – muitas vezes até nos esquecemos – estarmos vivos ao fim de 60 anos… E termos capital humano e arquitetónico para continuar a fazer o nosso trabalho. Temos uma sede nova, onde investimos bastante, e, a nível de staff, talvez sejamos das sociedades científicas mais profissionalizadas. Contratámos uma profissional de comunicação de relações públicas, para gerir a comunicação interna e externa, também por sentirmos necessidade de combater, de forma indireta, as fake news e passar uma imagem de credibilidade.

Todo este crescimento, pulverização e inovação da nossa atividade também se faz acompanhar da criação progressiva de cada vez mais secções especializadas e comissões. Criámos, recentemente, uma secção de Nutrição em Gastrenterologia, que tem uma importância social muito grande – no total são cinco secções especializadas, cada uma a querer fazer sempre mais coisas – e na calha está a criação de uma secção de Oncologia Digestiva. Criámos várias comissões: uma dedicada ao cancro, outra à doença inflamatória intestinal e uma outra de cariz jurídico. Portanto, isto é sinal de que estamos a crescer. Outra grande conquista foi o facto de a nossa revista, que é o produto científico do nosso trabalho, estar, neste momento, nas bases de dados internacionais.

Em termos de especialidade, temos sido os atores do grande desenvolvimento tecnológico e da sociedade moderna, acompanhando e estando muito perto da inovação, mesmo a nível internacional. Tenho notado, pela presença nos congressos, que a indústria farmacêutica – um dos fatores de grande desenvolvimento social e humano através da descoberta de cura para muitas doenças – sempre apostou em nós, nomeadamente em pessoas da SPG, e sempre olhou para Portugal como um país de futuro, a que temos correspondido. Pela força da doença e dos doentes, a força dos números, acho que temos capacidade para “dar um salto”.

Outros dois marcos importantes para a especialidade foram os prémios Nobel, um associado à identificação do vírus da hepatite B e posterior descoberta da vacina e outro à descoberta da infeção por Helicobacter pylori. Este último muito relevante, porque a úlcera foi, durante muitos anos, uma das grandes doenças da Gastrenterologia e as pessoas morriam muito disso. Hoje em dia, quase não se veem úlceras. Foi um grande marco.

JM | Tendo em conta o percurso desde a criação da Sociedade, como compara os desafios anteriores com os atuais?

RTM | A pouco e pouco, na história da Medicina começou a haver pessoas a interessarem-se pelo aparelho digestivo, de uma forma ainda muito primária. Há 60 anos, aquando a criação da SPG, os desafios eram a cirrose, a úlcera e a inexistência da diversidade de métodos de imagem – não havia ecografia, nem TAC e o raio x começava a aparecer. O número de médicos era também muito inferior.

O grande desafio atualmente é ao nível do cliente. Temos um doente do aparelho digestivo completamente diferente. Como vive muito mais tempo, tem mais tempo para ter doenças. É um doente idoso, fragilizado, com multimorbilidade, observando-se doenças complexas, incluindo mais cancros. Contudo, não morre tanto, mesmo pelas doenças do aparelho digestivo. O doente já começa também a ter doenças mais cedo e há muita medicação que não existia na altura.

Para além disso, o utente está muito mais informado e as redes sociais são uma nuance nova na nossa relação com os doentes. Ao nível da relação médico-doente, há uma grande diferença. Antigamente havia uma barreira de silêncio, quase como se o médico estivesse num pedestal. O médico estava no seu gabinete, não explicava as doenças, nem dizia que a pessoa tinha cancro. Não havia consentimento informado e quase nem se olhava para o doente. Agora, não. É – e deve ser – um mundo olhos nos olhos, de explicar a condição à pessoa… E o médico não está confinado ao consultório: tanto está no seu gabinete, como pode estar nas páginas dos jornais.

JM | Esse empowerment dos utentes, ligado à disponibilidade de informação, nem sempre se traduz, na prática, em melhores estilos de vida. Poderia tecer um comentário?

RTM | Há uma nova Competência da Ordem dos Médicos – Competência em Adictologia Clínica –, da qual faço parte e que incide sobre as dependências. Na nossa prática, enquanto gastrenterologistas, principalmente no que se refere ao fígado, há muitas situações que resultam de hábitos abusivos/dependências. Esses vícios prejudiciais ao organismo podem estar relacionados com álcool, drogas, tabaco e, neste momento, obesidade – o consumo excessivo de alimentos também pode ser considerado uma adicção. É de reforçar dois aspetos: o álcool, muitas vezes esquecido, é um dos grandes fatores de risco para as doenças do aparelho digestivo, desde vários cancros até às doenças do pâncreas e à cirrose, que é a sétima causa de morte em Portugal; e a obesidade, que está a aumentar entre as crianças, vai ser um “monstro” daqui a uns anos. Faz parte das características da sociedade moderna. Está mais informada e tem, de uma maneira geral, um acesso mais facilitado aos cuidados de saúde e à informação, mas está mais doente, com doenças frequentemente relacionadas com estilos de vida.

Também sobre isto se levanta a questão da veracidade da informação nesta sociedade da comunicação, o que para nós é uma preocupação e um desafio moderno. Nesse sentido, a SPG vai começar a investir mais na questão da informação que chega às pessoas. Estamos a refazer uns folhetos que já tínhamos editado em tempos, chamados “O que é?”, que abordam de uma maneira muito simples doenças ou situações do foro gastrenterológico que afetam as pessoas. Neste contexto, o nosso site também é extremamente importante.

No plano da comunicação, sentimos ainda a necessidade de contratar uma profissional de comunicação, no sentido de nos ajudar a marcar a agenda mediática. As pessoas querem ouvir o seu médico de uma maneira séria e a imagem que a SPG tem passado é excelente e tem permitido abrir portas em várias situações.

O objetivo é chegar às pessoas para as informar sobre esta questão dos estilos de vida e o que fazer quando surgem os problemas. Como tal, este conjunto de folhetos, infografias, site e presença na comunicação social configura um “pacote” comunicacional que visa uma mais forte intervenção da SPG na área da prevenção.

JM | Qual é a prioridade da SPG?

RTM | A principal é que os portugueses tenham uma boa Gastrenterologia. O nosso foco e grande objetivo é sermos melhores médicos para tratar melhor os doentes. Para isso, temos de ser cada vez melhores, o que implica promover a atividade científica: investigação, publicações, reuniões…

Perante os números relativos à incidência de doenças gastrenterológicas – chamo-os “gastromilhões” (ver quadro) –, o nosso plano é, para já, alertar a população, os decisores e as entidades oficiais. Tendo em conta aspetos mais modernos – fake news e a agressividade, jurídica e jornalística, que sentimos – é crucial delinear estratégias de comunicação externa. Com a comissão jurídica temos conseguido ir a todo o lado – Assembleia da República, Ministério Público, Provedor de Justiça –, mostrando, de forma séria e conciliadora, ao poder político e jurídico, que somos parceiros. No âmbito da comunicação social, também começámos a trabalhar no sentido de aproximação e de sermos mais construtivos. As portas têm-se aberto.

Também tem sido nossa política contactar muito com outras sociedades científicas e associações de doentes. Sou da opinião que a estratégia tem de passar por uma ligação muito grande a outras especialidades e a outros profissionais de saúde porque este é um trabalho de equipa e nós somos apenas uma peça. O nosso trabalho é melhor se tivermos uma boa articulação com a Medicina Geral e Familiar, a Cirurgia, a Anatomia Patológica, a Oncologia, a Infeciologia e, atualmente, com a Nutrição. Outro alvo da comunicação externa são as empresas. Esta ligação com o tecido económico tem sido feita de forma a penetrar numa estratégia de fund raising. A estratégia é atuar em diversas frentes, evitando estar muito fechado.

JM | Dentro desses “gastromilhões” destacaria alguma patologia?

RTM | Dentro dos “gastromilhões”, destacaria o cancro do cólon por ser uma área onde podemos ser mais interventivos. Deveria ser criada uma task-force e fazer do combate ao cancro do cólon um desígnio nacional. Todos os anos aparecem mais dez mil casos deste tipo de cancro e há um diferencial muito abruto em relação ao segundo com maior número de novos casos anuais, o cancro da mama, com 6.900. Neste aspeto, é o cancro mais importante. Daqui a dez anos vamos ter cem mil portugueses com este cancro e uns bons milhares de casos, se tivessem feito o rastreio, tinham sido apanhados e intervencionados mais cedo, evitando mortes. Ao tirar o pólipo, enquanto é pequenino, e segundo as recomendações, ninguém morre de cancro do cólon. Já tirar um cancro de uma pessoa que não fez rastreio aos 60 anos, quando já está invadido, reduz a esperança média de vida, sendo que metade destes doentes morre ao fim de cinco anos. Portanto, fazer deste combate um desígnio nacional seria uma maneira de salvar vidas.

Há outro cancro que nos preocupa muito que é o do pâncreas, que tem vindo a aumentar. Duplicou o número de mortes nos últimos 30 anos e vai continuar a crescer, vai ultrapassar a mortalidade por cancro da mama. Isto tem que ver, em parte, com os estilos de vida – tabaco, álcool, obesidade –, para além do próprio envelhecimento. É uma doença que nos preocupa e que preocupa a sociedade portuguesa de uma forma muito clara.

JM | Que desafios antevê no respeitante à criação de um desígnio nacional de combate ao cancro do cólon e reto?

RTM | Portugal tem lidado muito bem com várias task-forces e com vários problemas de saúde: desde a taxa de mortalidade infantil, que é das melhores do mundo, à taxa de mortalidade materna, passando pelo tratamento do VIH e da hepatite C e pelos transplantes. O nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), em 2000, era o 12.º melhor do mundo. Mas, isto aconteceu porque houve dirigentes políticos, em colaboração com as sociedades científicas, a perceberem que era necessário atacar estes problemas de frente.

Um dos principais desafios é a falta de financiamento. Uma questão importante agora é o facto de quase toda a gente querer fazer a colonoscopia com sedação – faz parte da nossa sociedade não querer ter dor. Se calhar, o Estado podia investir em aumentar o número de anestesistas no serviço público para as pessoas fazerem o exame sem sofrerem. Provavelmente, salvaríamos algumas vidas porque assim as pessoas não tinham medo, sentiam-se mais confiantes e adeririam mais à colonoscopia.

Outras medidas poderiam ser a tentativa de incluir mais indivíduos no rastreio, seja por sangue oculto nas fezes, seja por colonoscopia, procurando sensibilizar mais a população para a sua importância. Uma comunicação médica bem feita raramente se traduz na recusa de realização de uma colonoscopia.

JM | A abrangência da Gastrenterologia reflete-se num maior alcance à população. Qual é o papel da SPG?

RTM | Os gastroenterologistas ou, como se diz na gíria, “os gastros”, são um grupo de cidadãos – e a puxar pela nossa autoestima – muito importantes para não paralisar o país. São responsáveis por tudo o que se passa no aparelho digestivo. Na União Europeia de Gastrenterologias, de cuja Assembleia faço parte, diz-se que cerca de um terço de toda a população passa pelas mãos de um gastroenterologista. Portanto, podia dizer que, ao fim de uma década, passam pelas nossas mãos três milhões de portugueses, uns com doenças graves, como os cancros, outros com patologias menos graves, mas incapacitantes. No entanto, eu agora consigo dizer que todos os portugueses vão parar às nossas mãos. Porquê? Porque a ideia de salvar vidas já está associada ao rastreio do cancro do cólon aos 50 anos e, como se espera que a maior parte da população chegue aos 50 anos, todos os portugueses, de um modo geral, vão passar por nós.

Na medida em que as sociedades científicas, numa correspondência biunívoca e com benefícios múltiplos, são um bocado aquilo que os seus membros são – a massa cinzenta e o trabalhar dos atos tem muito a ver com os elementos –, a SPG tem desenvolvido o seu trabalho a um nível elevado e, enquanto associação científica de utilidade pública, tem um papel e uma missão de responsabilidade social.


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O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
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