No âmbito do Dia Mundial da Diabetes, assinalado a 14 de novembro, a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP) lançou a campanha “Quando a cabeça não tem juízo”. Remetendo para a música “O corpo é que paga”, de António Variações, a iniciativa alertava para os efeitos da diabetes em dois dos órgãos mais afetados pela doença: o coração e os rins. Em entrevista ao Jornal Médico, o presidente da APDP, José Manuel Boavida, faz um balanço desta campanha, alinhando-a com a missão da associação.
JORNAL MÉDICO (JM) | Quais os principais objetivos da APDP com a campanha “Quando a cabeça não tem juízo”?
JOSÉ MANUEL BOAVIDA (JMB) | O acompanhamento das pessoas com diabetes prende-se, em grande parte, com a adoção de atitudes individuais que as pessoas precisam para viver com a doença. Adaptações essas que muitas vezes necessitam de reforços positivos. Posto isto, e associando ao facto de este ano a diabetes ter como tema principal “A diabetes e a família”, a APDP quis chamar a atenção para a necessidade de apoiar as pessoas com diabetes no seu quotidiano para que consigam atingir os objetivos de compensação necessários, pois essa é uma das principais dificuldades.
Neste sentido queremos lutar para que as pessoas tenham acesso a conselhos e orientações, reforços pedagógicos, entre as consultas médicas ou de enfermagem que possam ser mais dirigidos. Pretendemos lutar por um acesso à educação em geral, pois não é a cabeça que não tem juízo, mas toda a sociedade que cria condições para que os comportamentos não sejam os mais adequados para a prevenção e controlo da diabetes.
A APDP pretende ainda dizer que a família tem sido o grande elemento de apoio às pessoas com diabetes, uma vez que é esta quem os acompanha diariamente nas tomadas de decisões necessárias ao longo do dia.
JM | No seguimento desses objetivos, como analisa os resultados da campanha?
JMB | A campanha inseriu-se nas múltiplas atividades do Dia Mundial da Diabetes, em que centenas de milhares de pessoas promoveram diversas ações, como marchas, palestras e encontros, por todo o país – de Tavira a Bragança. Cruzaram-se múltiplas campanhas, pelo que acredito ter sido um dos dias mundiais mais ativos e com maior impacto.
Seguramente esta nossa campanha específica terá conseguido um bom impacto através dos meios de que se socorreu – nomeadamente televisão e rádio – e contribuído para a grandeza que foi este Dia Mundial da Diabetes.
JM | Na luta contra a diabetes, quais são os principais desafios identificados pela associação?
JMB | Em primeiro lugar, em relação às pessoas não diagnosticadas ou às que estão em risco, é a sua identificação. Temos de encontrar formas de rastreio sistemático do risco da diabetes. No que concerne a este aspeto, quero salientar que a Medicina do Trabalho tem uma grande responsabilidade – não atingindo muitas vezes os objectivos que deviam ter no diagnóstico precoce e encaminhamento – e que os centros de saúde têm de ir para além das suas paredes, ao encontro da população que não os frequenta. Isto é essencial, até porque muitas das vezes é nesse espaço que se encontra a maior parte dos doentes ainda sem diagnóstico de diabetes ou com risco de vir a desenvolver a doença.
Em segundo lugar, para as pessoas já com diabetes, achamos que a prioridade é a sua educação. Não nos podem chegar apenas os medicamentos, a terapêutica farmacológica... Acima de tudo, é essencial investir na educação das pessoas, quer para a gestão da sua medicação, quer para a gestão do controlo da doença. Por este motivo, o processo de educação tem de ser estruturado, contínuo e permanente e não uma formação dada ao acaso por pessoas que podem ser mais ou menos competentes e ter mais ou menos propensão para a educação. A educação deve ser oferecida pelos centros de saúde a todas as pessoas com diagnóstico de diabetes, imediatamente a seguir ao diagnóstico e de forma sistematizada.
JM | O que justifica a escolha do mote “O retrato dos vários lados da diabetes” a propósito do 3.ª Congresso Nacional da APDP?
JMB | A escolha do tema vem no sentido de tentar colmatar esta necessidade de promover a educação: os indivíduos com diabetes precisam não só de ter esta educação, como tê-la sob vários olhares – os quais vão desde os olhares do cardiologista, do nefrologista, até ao do cirurgião que analisa o pé e ao do oftalmologista que avalia o olho. Esta abordagem à diabetes é essencial, uma vez que é uma doença que congrega um conjunto enorme de especialidades, onde cada especialista observa a pessoa com diferentes perspetivas e exigências. Isto implica que todas estas áreas de especialidade trabalhem em conjunto: é preciso que comuniquem entre si, se conheçam e percebam que a sua mensagem tem de ser congruente, reconhecendo a pessoa com diabetes como um elemento central dessa atividade.
Considerando a natureza polifacetada da diabetes, para a nossa associação é muito importante tentar encontrar formas de aliança entre as sociedades científicas e associações de doentes e reforçar que a abordagem da Medicina moderna para a doença tem de estar inserida num contexto de doença crónica, perspetivando a educação e a inclusão das pessoas no seu próprio tratamento e cuidado.
JM | Qual o papel da família na prevenção e no rastreio?
JMB |Na campanha “Quando a cabeça não tem juízo”, também se pretende divulgar a mensagem de que quem tem familiares com diabetes possui um dos fatores de risco para o desenvolvimento da diabetes. Tendo esse conhecimento, apelamos a que façam, junto do seu médico de família, o questionário de risco para ver se necessitam de fazer análises específicas de forma a detetar a patologia. Portanto, para além dos profissionais de saúde, a família não só é o “local de encontro” para cuidar da diabetes, mas também um bom espaço para irmos ao encontro e rastrear as pessoas que desconhecem ter a doença.
JM | Relativamente aos projetos que a APDP tem vindo a desenvolver, quais destacaria?
JMB | Dos projetos que a associação está a levar a cabo, gostava de realçar dois tipos de iniciativas: as que desenvolvemos junto da comunidade e outras mais específicas.
A nível comunitário temos o projeto “Diabetes no bairro”, dirigido a bairros sociais e bairros com dificuldades, isto é, os espaços constituídos por uma população com poucos recursos de saúde e com uma literacia muito baixa. O objetivo é abordar adequadamente a diabetes nesses locais e tentar envolver as autarquias, através do desenvolvimento de processos integrados e sistemáticos de rastreio da população e da criação de grupos de interajuda, quer de pessoas em risco de diabetes, quer de indivíduos já com diabetes.
Quanto a outros projetos, estamos a fazer intervenções junto dos lares de idosos, que neste momento têm, em média, 30% da sua população com diabetes. Tendo essa realidade em conta, sentimos necessidade de dar um apoio muito grande a essas instituições, seja pela educação e formação de auxiliares, seja pela inclusão de normas de boas práticas no acompanhamento das pessoas com diabetes e nos cuidados a ter com os pés e como fazer a sua avaliação. Este projeto tem o apoio da Direção-Geral da Saúde em três concelhos do Alentejo e já tem antecedentes em três concelhos da região de Lisboa. Prestar melhores condições de atendimento e de acompanhamento de pessoas com diabetes já com mais idade, muitas vezes acamados, é também uma preocupação muito grande da associação.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.