JORNAL MÉDICO (JM) | Que registos e inquéritos existem em Portugal sobre insuficiência cardíaca (IC)?
BRENDA MOURA (BM) | Os registos que em Portugal se debruçaram sobre a problemática da IC foram o Heart Failure – Atlas e o EORP Heart Failure Long Term Registry II, que abordaram aspetos diferentes da IC.
O HF-Atlas é uma iniciativa da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC) e da Heart Failure Association (HFA), no qual participaram 42 países. Aqui tentou retratar-se as condições para o tratamento da IC. Inclui alguns dados epidemiológicos, mas sobretudo debruça-se sobre as condições logísticas – número de centros de implantação de dispositivos e número de dispositivos implantados, número de centros a realizar cirurgias cardíaca, entre outros.
O EORP Heart Failure Long Term Registry II é também uma iniciativa da ESC e reuniu dados de 211 centros de 21 países europeus e mediterrâneos. Uma característica curiosa deste registo é o facto de terem tentado ter uma imagem representativa de cada país, englobando hospitais com diferentes níveis de complexidade. O objetivo deste registo foi mais dirigido à caraterização e à forma como cada doente é tratado – qual a sua clínica, qual a medicação que faz, em que doses, que exames realiza, entre outros aspetos.
Já quanto a inquéritos, existirão obviamente outros, mas pareceu-me interessante abordar um inquérito que foi elaborado pela Competence Network Heart Failure Germany, que já foi utilizado em outros países. Foi distribuído durante os dias de divulgação da IC em múltiplas localidades em Portugal e responderam mais de setecentas pessoas.
JM | Que dados se obtiveram?
BM | Começando pelos dados mais genéricos, verifica-se que Portugal é o segundo país com mais pessoas acima dos 65 anos de idade, só ultrapassado por Itália. Em relação à esperança de vida à nascença, ocupamos a 13.ª posição, sendo no entanto evidente o grande diferencial entre a sobrevida feminina (substancialmente mais elevada) e a masculina.
Verifica-se depois que quanto ao número de cardiologistas, o número de centros que implantam dispositivos cardíacos e que fazem transplantação, a nossa realidade é semelhante à da maioria dos países europeus. Se, no entanto, olharmos para hospitais com programas de tratamento de IC, verifica-se que aqui ficamos aquém da maioria dos países europeus. Outros dados relevantes, são o facto de termos um número relativamente baixo de altas hospitalares com o diagnóstico de IC e de não existirem números relativamente a cuidados paliativos em IC.
Poder-se-ia por isto julgar que Portugal seria um país “poupado” a esta epidemia… No entanto, eventualmente, não será essa a explicação para estes resultados.
Sabemos que no EPICA, cujos dados remontam já a 1998, se verificava que em Portugal a prevalência de IC era de 4,36% da população com idade superior a 25 anos. Como expetável esta prevalência aumentava com a idade, sendo inferior a 1% nas idades inferiores a 49 anos, e atingindo os 16% na população acima dos 80 anos. Um dado curioso diz respeito ao tipo de IC: já nessa altura havia mais doentes com IC com fração de ejeção (FE) preservada do que com FE reduzida (1,7% IC FE preservada versus 1,3% IC FE reduzida).
JM | E em relação aos doentes portugueses? São diferentes dos restantes europeus? E são tratados de forma diferente?
BM | Um dos aspetos que se torna evidente no EORP Heart Failure Long Term Registry II diz respeito à etiologia, e é o facto de em Portugal a doença coronária ter uma prevalência significativamente inferior à média dos países europeus. Outro, é relativo a FE, cuja mediana em Portugal é 40% e na Europa 35%; o número de doentes com FE>45% é em Portugal de 35,8%, e na Europa 22,5%.
Em relação à terapêutica, diversos dados são interessantes. Desde logo, o facto de, conforme recomendam as guidelines, se aproveitarem as hospitalizações para se melhorar a terapêutica dos doentes. À data de alta, o número de doentes a fazer terapêuticas modificadoras de prognóstico é substancialmente mais elevado do que na admissão.
Quando atentamos nos doentes em ambulatório e com FE reduzida, verifica-se que a percentagem de doentes a fazer IECA/ARA, beta-bloqueadores, antagonistas dos recetores mineralocorticoides (ARM) é elevada – aproximadamente 90% a fazer IECA/ARA e bloqueador beta e cerca de 60% a fazer ARM. Se forem excluídos os doentes que não toleraram ou tinham contraindicação para estas terapêuticas verifica-se que a submedicação era de facto bastante baixa.
E já agora uma palavra referente ao prognóstico: curiosamente, quer a sobrevida, quer as hospitalizações por todas as causas dos doentes em ambulatório, são mais baixas em Portugal comparativamente à média europeia. Eventualmente estes dados poderão estar na dependência da etiologia e da FE da população portuguesa, que como apontado serão diferentes das de outros países.
JM| E o inquérito dirigido à população, revelou dados interessantes?
BM | A magnitude da IC do ponto de vista epidemiológico e o seu impacto prognóstico contrastam claramente com o conhecimento que a população tem acerca da doença. Neste questionário verifica-se que o reconhecimento de sintomas de IC é bastante escasso – a fadiga é identificada por 66% dos inquiridos como sintoma de IC, seguido pela dispneia, identificada em 52% dos casos. No entanto, 38% identificam a dor torácica como um sintoma de IC, numa clara confusão com a síndrome coronária aguda.
Alguns conceitos enraizados são não só errados, como podem obstaculizar o adequado diagnóstico e tratamento desta situação – o facto de a IC ser considerada normal em idades mais avançadas, e o exercício ser contraindicado são dois deles.
JM | Quais considera serem as mensagens mais importantes que podemos retirar destes trabalhos?
BM | Em poucas palavras poder-se-á dizer que a IC é muito prevalente em Portugal, com um predomínio de IC com FE preservada. Os nossos doentes estão corretamente tratados do ponto de vista médico e temos disponíveis as técnicas diferenciadas de um modo semelhante ao resto da Europa; a existência de estruturas organizativas de abordagem multidisciplinar destes doentes poderia ainda melhorar as condições de tratamento.
A IC é um importante problema da saúde em Portugal. Os dados destes registos e inquéritos levantam a hipótese de haver necessidade de um alerta para as entidades responsáveis no sentido quer de fomentar a organização multidisciplinar para tratamento da IC, quer de alertar e educar a população no que respeita as patologias cardiovasculares.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.