A dislipidemia é um dos fatores de risco cerebrovascular e cardiovascular mais prevalentes nas populações ocidentais e, em Portugal, “os valores-alvo do colesterol estão muito longe do desejável”. Quem o diz é o cardiologista do Hospital das Forças Armadas e professor da NOVA Medical School, Hélder Dores, que alerta para a existência de alguma inércia médica e enuncia as vantagens de uma abordagem terapêutica mais “agressiva”.
JORNAL MÉDICO (JM) | Que peso tem a dislipidemia como fator de risco cardiovascular (RCV)?
HÉLDER DORES (HD) | Em conjunto, os eventos decorrentes de doença cerebrovascular e cardiovascular – respetivamente, o acidente vascular cerebral (AVC) e o enfarte agudo do miocárdio (EAM) – constituem, ainda, a principal causa de morte nos países ocidentais, incluindo em Portugal. Estima-se que a taxa de mortalidade por AVC e EAM totalize cerca de 30% dos óbitos no nosso país.
A manifestação das doenças cerebrovascular e cardiovascular é dependente de vários fatores de risco, muitos dos quais são modificáveis. Um destes fatores de risco modificáveis, e um dos mais importantes, é a dislipidemia. Outros fatores de RCV modificáveis major são a hipertensão arterial (HTA), o excesso de peso, o tabagismo e a diabetes. Por outro lado, alguns não são modificáveis, como a idade, o género e a predisposição genética.
A dislipidemia tem, efetivamente, um peso determinante, por vários motivos. Primeiro, porque na nossa realidade populacional, os valores-alvo do colesterol estão muito longe do desejável. Em segundo lugar, porque, normalmente, os fatores de RCV não existem isoladamente num mesmo doente, exponenciam-se mutuamente. Um doente obeso, por exemplo, está em maior risco de ser diabético, hipertenso e dislipidémico. Na maioria das pessoas, a identificação de um fator de risco leva-nos à identificação de outros, mas a dislipidemia é transversal no RCV global. De acordo com o risco estimado, os valores-alvo da terapêutica são variáveis e têm grande preponderância os valores de perfil lipídico, nomeadamente do colesterol LDL [low-density lipoprotein].
JM | Apesar do elevado impacto do colesterol LDL, de ser um conhecido fator de RCV e um dos mais prevalentes nas populações ocidentais, ainda é subvalorizado?
HD | Sim, é muito desvalorizado, antes de mais, porque não se traduz em sintomatologia, o que por si só tende a diminuir a adesão à terapêutica e às mudanças de estilo de vida. Por isso, muitas vezes, é só após um primeiro evento agudo que a pessoa é confrontada com a consequência grave de não ter o seu colesterol controlado. É desvalorizado, também, porque muitos doentes acreditam que a alteração do perfil lipídico ocorre de um dia para o outro e desculpam-se com o facto de nos dias prévios à colheita das análises terem feito refeições com mais gordura. Não têm a perceção de que ao terem o colesterol elevado ao longo dos anos, estão a aumentar o risco de desenvolverem doença aterosclerótica.
Mas, além de ser desvalorizado pelos doentes, o colesterol LDL é um fator de risco também desvalorizado pelos médicos! Existe, da nossa parte, alguma inércia terapêutica. Muitas vezes, deixamos passar demasiado tempo, tentando que o doente consiga controlar o colesterol apenas com alterações do estilo de vida. Em muitos casos, podemos e devemos iniciar mais cedo terapêutica farmacológica e assim prevenir eventos agudos.
JM | As alterações no estilo de vida são difíceis de implementar? São suficientes ou devem ser complementares à terapêutica?
HD | A componente comportamental é fundamental, mas ultrapassa em boa medida a relação médico-doente, é uma questão educacional, cultural e que não diz respeito apenas à população portuguesa. É muito difícil alterar o estilo de vida de um doente e só com medidas comportamentais tratar a dislipidemia, principalmente se falamos de pessoas de meia-idade, que sempre tiveram excesso de peso, maus hábitos alimentares, que são sedentárias… não é fácil, nem a globalidade das instituições de saúde estão devidamente preparadas nem têm estruturas montadas para fazer adequadamente este tipo de aconselhamento.
Por estas razões, nos doentes que têm indicação para uma intervenção medicamentosa – e que são precisamente os doentes que apresentam RCV mais elevado – a abordagem comportamental deve ser paralela ao ato médico de prescrição. Nestes casos, e sobretudo em prevenção secundária, temos de ser mais “agressivos”, não há que ter receio de prescrever. Não podemos restringir o tratamento à intervenção comportamental e esquecer os fármacos, nem o contrário. Calculado o score de risco e se, além da dislipidemia, o doente apresentar outros fatores de risco, temos também de ser mais “agressivos” na terapêutica a instituir.
Os idosos são obviamente uma população em maior risco, surgem na consulta com várias comorbilidades e fatores de risco concomitantes, mas, perante doentes mais jovens e em risco, temos também a obrigação de ser ainda mais agressivos, porque falamos de pessoas que têm mais anos de vida pela frente, mais tempo para desenvolver complicações e efetuar terapêuticas e procedimentos invasivos que podem ser evitados, com impacto relevante não só na saúde, mas também a nível socioeconómico.
JM | Os dados nacionais do estudo DYSIS mostram que a dislipidemia está subtratada e que 63% dos doentes portugueses tratados apenas com estatinas não atingem os valores-alvo de colesterol LDL. Por um lado, estes dados vêm confirmar alguma desvalorização e inércia médica na abordagem da dislipidemia; por outro, evidenciam limitações do tratamento com estatinas em monoterapia. Na sua perspetiva, o que é possível fazer para inverter esta tendência e adotar uma estratégia mais efetiva?
HD | Os resultados do DYSIS são assustadores: 63% das pessoas com indicação para fazer terapêutica farmacológica não atingem os valores-alvo de colesterol LDL – e este número é transversal aos vários níveis de RCV dos doentes estudados. Analisados os subgrupos dos que apresentam risco alto ou muito alto (com evento agudo prévio, diabéticos, etc.), a percentagem dos que não atingem os valores-alvo continua a ser superior a 50%!
O que fazer? Para além da intervenção comportamental, os médicos têm um papel fulcral na prescrição. Em primeiro lugar, temos de estratificar o RCV de cada doente, estabelecer objetivos claros, realistas e discuti-los com o doente, envolvendo-o. Se o doente não estiver consciente do seu risco e do que ele acarreta, não vai aderir. Na Europa, utilizamos a estratificação baseada em patamares que têm como cut-off o valor do colesterol LDL. Definido esse risco e partindo do valor basal de colesterol LDL, sabemos qual a percentagem de redução necessária para alcançar o nível-alvo de colesterol LDL preconizado nas guidelines.
Imagine-se que falamos de um doente com RCV muito elevado, no qual o valor-alvo de colesterol LDL é inferior a 70 mg/dl. Se o doente apresentar um valor basal de colesterol LDL de 140 mg/dl, a redução tem de ser de 50%, para atingirmos os 70 mg/dl. Além disso, as novas guidelines preconizam que em doentes tratados de novo, a redução do colesterol LDL deve ser sempre de, pelo menos, 50%.
O médico tem de saber com que fármacos pode alcançar estes alvos, caso contrário, pode estar meses sem conseguir alcançá-los. As estatinas são os fármacos de primeira linha. Estudos com estatinas na prevenção primária e secundária, em doentes com valores basais idênticos de colesterol LDL, demonstram que a redução da taxa de eventos é muito superior nos doentes em maior risco – ou seja, são estes os que mais beneficiam do tratamento. Contudo, está estudado que a dose e o tipo de estatina fazem toda a diferença. Certas estatinas, em determinadas doses, nunca vão conseguir a redução necessária e só estamos a perder tempo – sabendo, como mostram os estudos, que os eventos cardiovasculares podem ser muito precoces e que os meses fora do alvo podem ter implicações muito relevantes, como eventos major, ou mesmo morte.
JM | Quais as estatinas que garantem melhores resultados?
HD | As opções mais potentes são a atorvastatina e a rosuvastatina, que podem reduzir os valores do colesterol LDL, no máximo, em 50 a 55%, mas estamos a falar nas suas doses mais elevadas. Também sabemos que a duplicação da dose de estatina só acresce uma redução do colesterol LDL na ordem dos seis por cento. Portanto, mesmo duplicando a dose, nunca vamos atingir os objetivos, enquanto podemos provocar alguns efeitos adversos com estatinas em altas doses. O receio destes efeitos adversos são também causa de alguma inércia médica, de queixas dos doentes e, claro, de má adesão à terapêutica.
JM | Qual é a alternativa?
HD | Em termos farmacológicos, uma alternativa é acrescentar ezetimiba à estatina – disponível em associação, numa toma única diária. Bastam 10 mg de ezetimiba em associação a uma dose convencional ou mais baixa de estatina – por exemplo, atorvastatina 20 ou 10 mg – para conseguirmos uma redução adicional de 20 a 30% dos valores de colesterol LDL (por oposição aos seis por cento com a duplicação da dose de estatina). Há estudos que mostram que o tratamento com atorvastatina isolada, na dose de 10 mg, reduz o colesterol LDL em 30 a 40%, no máximo. Quando se potencia a atorvastatina com ezetimiba 10 mg, essa redução é superior a 50%. Existe evidência de que com ezetimiba em associação a uma dose baixa de estatina (por exemplo, atorvastatina 10 mg), a redução do colesterol LDL é equivalente à alcançada com atorvastatina 80 mg! Portanto, faz todo o sentido usarmos uma estratégia de associação com ezetimiba, porque estamos a potenciar a eficácia, sem recorrer ao aumento da dose de estatina, acautelando alguns efeitos adversos e aumentando a adesão à terapêutica.
JM | Que doentes têm indicação para tratamento em associação com ezetimiba? Pode ser uma opção de primeira linha?
HD |A associação de ezetimiba com estatina é a primeira alternativa para o doente que faz estatina em monoterapia, mas que não consegue controlar o colesterol. Nos doentes com risco mais elevado e nos quais seja previsível a impossibilidade de atingir os valores-alvo só com estatina, ou ainda nos doentes com evento prévio, mas que continuam fora dos valores-alvo, a associação com ezetimiba pode mesmo constituir a primeira opção. Na minha prática clínica tomo frequentemente essa decisão, pelo impacto prognóstico da redução marcada do colesterol LDL na abordagem ab initio com a associação. Por outro lado, quanto mais rápido conseguirmos essa redução, mais o doente estará do nosso lado: vai atingir o alvo, controlar os fatores de risco e nós conseguimos otimizar a terapêutica. Se perdermos tempo, o doente poderá perder confiança e aderir menos às nossas sugestões. A mensagem-chave é que não devemos perder tempo para começar um tratamento mais eficaz.
Há outras combinações que podemos fazer, por exemplo, num doente que já está a fazer as doses máximas desta associação de atorvastatina com ezetimiba, mas que, mesmo assim, precise de reduzir mais ainda o colesterol LDL: podemos acrescentar mais estatina, ou mais ezetimiba isolada, potenciando mais ainda a eficácia – e as guidelines já o referem.
JM | Por outro lado, existe evidência de que a ezetimiba é bem tolerada…
HD | Sim, é muito bem tolerada – e, em associação, a ezetimiba tem menos efeitos adversos comparando com a dose aumentada de estatina que seria necessária para obter o mesmo benefício.
E depois, o que é muito importante, não estamos “só” a falar de reduzir o colesterol LDL. No estudo IMPROVE-IT, que comparou a sinvastatina 40 mg versus a associação de sinvastatina 40 mg com ezetimiba 10 mg, verificou-se que a redução significativa do colesterol LDL conseguida com a associação se traduziu numa redução de eventos a longo prazo, num endpoint conjunto que incluiu EAM não fatal, AVC não fatal, revascularização coronária, entre outros. Portanto, ficou provado que a associação tem impacto prognóstico. Posteriormente, surgiu a associação de ezetimiba a uma estatina mais potente, a atorvastatina. Esta associação é muito eficaz, permitindo que os doentes andem bem controlados e prevenindo eventos cardiovasculares.
A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.