Raquel Varela: “Sem exclusividade dos médicos, nunca teremos um SNS forte!”
DATA
03/10/2019 10:59:57
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Jornal Médico
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Raquel Varela: “Sem exclusividade dos médicos, nunca teremos um SNS forte!”

Uma percentagem do PIB de pelo menos 5% alocada ao SNS, um SNS sem concorrência interna, gestão democrática e exclusividade dos médicos. Estas são, para Raquel Varela, as quatro premissas indispensáveis para um Serviço Nacional de Saúde sustentável no futuro. Em entrevista ao Jornal Médico, a historiadora e investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, lamenta que o SNS tenha vindo a ser “sistemática e propositadamente desnatado a favor do setor privado pelos sucessivos governos”. A autora do recém-editado livro História do Serviço Nacional de Saúde em Portugal – A Saúde e a força de trabalho, do Estado Novo aos nossos dias destaca o papel incontornável dos médicos na construção do SNS: “ao defenderem os seus interesses, enquanto classe profissional, os médicos defenderam o país e os portugueses”.

JORNAL MÉDICO (JM) | Em vésperas de fazer 40 anos, o SNS é o típico “quarentão” em crise existencial?

RAQUEL VARELA (RV) | Ora aí está uma belíssima pergunta! [risos] Eu acredito que os homens aos 40 anos não precisam de entrar em crise, podem até estar no auge da sua força, da sua maturidade, do seu vigor. Então, acho que o SNS tem todas as condições – pelo saber acumulado – para estar no auge do seu vigor. Não acredito que os desenvolvimentos tecnológicos ponham em causa a sustentabilidade do SNS… Pelo contrário, o desenvolvimento científico e tecnológico só aumenta a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde.

O que está mal no SNS é que ele tem sido, sistemática e propositadamente, desnatado a favor do setor privado e isso deve-se, sobretudo, ao fim da exclusividade dos médicos no SNS. Enquanto não tivermos reposto a exclusividade dos médicos no SNS, com salários dignos para estes profissionais, não vamos ter um SNS forte.

JM | No livro recentemente editado sobre a História do SNS as previsões são pessimistas – já o eram em 2016! – e fala em “colapso” e em “estrangulamento”. No seu entender, a ausência de vontade e de ação política por parte dos sucessivos governos é a grande culpada pela situação atual?

RV | Sem dúvida! E não diria uma “falta”, mas antes uma vontade e uma ação política no sentido contrário… Ou seja, todas as medidas tomadas pelos sucessivos governos foram criteriosamente elaboradas no sentido de favorecer o setor privado, tendo como consequência a degradação do SNS. Nessas medidas incluem-se os hospitais SA e EPE e o fim da exclusividade dos médicos no SNS.

O que a experiência histórica nos diz é que a maioria dos médicos, tendo boas condições de exclusividade no Serviço Nacional de Saúde, é aí que prefere permanecer. Os nossos estudos/investigações têm provado com grande sustentabilidade (os nossos dados nunca foram postos em causa!), que houve várias medidas que contribuíram para a situação atual. Uma delas consiste neste modelo em que temos o SNS a concorrer contra si próprio. Um modelo em que primeiro se define a procura e só depois se adequa a oferta. Esse modelo mercantil é verdadeiramente insustentável e coloca em causa a saúde dos médicos, as boas condições de trabalho dos médicos e de outros profissionais de saúde, bem como a saúde dos doentes.

Há uma história que gosto sempre de contar, que me foi partilhada nas minhas pesquisas, em que o anestesiologista foi questionado por um gestor hospitalar porque é que tinha realizado tantas cirurgias a apendicites agudas e não a hérnias inguinais, “como previsto”… Ora, esta história é elucidativa de como a atual gestão em Saúde é conducente a deixar espaço aos privados. Não é por acaso que os três maiores edifícios em Lisboa são a Caixa Geral de Depósitos (um banco recapitalizado por nós), a EDP (rendas fixas) e o novo hospital da CUF em Alcântara. E eu acho que isto não é apenas arquitetura e urbanismo! Tem que ver com centros de poder e é terrível quando atribuímos centros de poder a empresas cuja função é produzir lucro. A Saúde não pode estar sujeita ao lucro! A Saúde tem que estar sujeita às necessidades das pessoas. Mas para cobrir essas necessidades é preciso ter profissionais de saúde e condições de trabalho muito bem organizadas e sustentadas, e que cuidem dos cuidadores.

JM | Dados recentes mostram-nos que metade dos médicos portugueses estão em bournout. Como é que chegámos a este ponto?

RV | Sabemos que estão em burnout, mas não sabemos porquê. O estudo recentemente levado a cabo sobre o burnout médico em Portugal é, quanto a mim, muito criterioso e correto, pelo que os valores são bastante realistas, mas não avança causas para esta realidade. Esse é um trabalho que terá de ser desenvolvido: o de perceber o porquê. Mas temos várias hipóteses… À cabeça: a falta de reconhecimento e o sofrimento ético. O reconhecimento tem sido muito estudado no campo da Psiquiatria, nós necessitamos do reconhecimento interpares, social e pessoal. O reconhecimento passa por tudo, incluindo pelo salário, mas não somente pelo salário. Quando um médico trabalha 35 horas semanais e ao final de 30 anos de carreira recebe 1.700 euros mensais, obviamente que não se sente reconhecido. Para além do salário, entram também em jogo variáveis como a falta de autonomia e de criatividade ou o controlo exterior de tempos. É preciso não esquecer que o ato médico é um ato criativo e autónomo, por excelência!

Não podemos acreditar que alguém pode estudar e formar-se a este nível tão elevado de qualificação e estar constantemente a ser vigiado. Aliás, devo dizer que os computadores pessoais que foram introduzidos no SNS para a realização do ato médico foram lá colocados como método de vigilância dos médicos. Não têm nenhuma capacidade de aumentar a produtividade do trabalho. A sua função é vigiar os médicos! Trata-se da transposição dos métodos das fábricas dos anos 30 para um hospital, para um centro de saúde… E para as escolas também. Atualmente temos um palavrão que é a proletarização dos médicos, enquanto assistimos à transformação dos hospitais/centros de saúde/serviços públicos em fábricas que acompanharam, imitaram e trouxeram os métodos fabris e de vigilância de uma linha de montagem.

JM | E é aí que entra a segunda variável conducente ao burnout médico: a do sofrimento ético?

RV | As atuais condições de trabalho sistemática e inevitavelmente conduzem a que os médicos façam atos contra a sua consciência e todo o dinheiro do mundo não compra uma consciência, porque o que nos leva ao sofrimento é normalmente o que está no inconsciente.

Sabemos que quem combate as más práticas não entra tão facilmente em depressão/burnout. É justamente quem não reage, quem não se revolta contra as más práticas que entra em burnout, entre outras razões pela questão do sofrimento ético. Mas também pela questão da exaustão. Em Portugal, devido aos salários vergonhosamente baixos, os médicos compensaram esse valor com horas extraordinárias o que conduz à exaustão. E, de facto, a exaustão é uma condição de burnout para todos os setores, uma vez que a partir de um determinado número de horas-extra as pessoas entram em exaustão.

Mas, a investigação que tenho vindo a fazer, mostra-me que o sofrimento ético tem mais peso nesta realidade. De acordo com alguns testemunhos que recolhi, em determinadas unidades de saúde, os médicos são pressionados a só fazerem o registo da diabetes quando já têm o doente controlado, sob pena de alterar os indicadores de financiamento. À semelhança do que se passa no campo da educação, em que as avaliações são inflacionadas por causa dos rankings, dos quais depende o financiamento dos agrupamentos de escolas.

Estes métodos de avaliação introduzidos nos serviços públicos são completamente perniciosos e vão contra a produtividade do trabalho. O que temos que medir são os ganhos em saúde, o bem-estar e a qualidade de vida dos doentes e dos médicos. Todos temos que ser avaliados, mas não por uma folha de Excel, muito menos nos serviços públicos onde o que predomina (ou deveria predominar) é o contato humano.

JM | Qual foi o grande objetivo do livro História do Serviço Nacional de Saúde em Portugal – A Saúde e a força de trabalho, do Estado Novo aos nossos dias, encomendado pelo Conselho Regional do Sul (CRS) da Ordem dos Médicos (OM) e editado em junho último?

RV | O grande objetivo deste livro e da investigação que lhe deu corpo foi fazer as contas do SNS depois da intervenção da troika em Portugal. Tanto a troika como os nossos governantes afirmavam que “o SNS continuava a fazer mais, com menos”, mas o que os nossos dados vieram provar é que – fazendo as contas a todos os atos praticados no SNS – não é “mais com menos”, mas mais com o trabalho médico não pago.

Contabilizámos quanto ganhavam os médicos antes e depois da troika e que atos praticavam e chegámos à conclusão que todos os profissionais de saúde pagaram esse esforço, mas que quem mais pagou, do ponto de vista do salário, foram os médicos, sobretudo ao nível das horas extraordinárias…

JM | Mas, nem só de contas fala o livro…

RV | Para levarmos a cabo este trabalho acabámos a fazer uma história do SNS, porque o SNS não tem apenas 40 anos. A bem da verdade, a génese do SNS remonta a 1974. Os próprios médicos esquecem-se muitas vezes que o SNS não nasce por decreto. O decreto é importante e Arnaut é uma personalidade incontornável na história da Saúde e do SNS em Portugal, mas o serviço médico à periferia, a nacionalização das Misericórdias e a gestão democrática dos hospitais… Tudo isso são pilares desta construção.

Os médicos em Portugal não são apenas excelentes médicos, eles são também extraordinários gestores, na medida em que aprenderam a gerir hospitais no pós-25 de abril. Devo dizer que a gestão privada, profissionalizada, sem uma componente de gestão democrática dos médicos é absolutamente desastrosa, porque é impossível pedir a alguém que não domina o conteúdo para dominar a forma. Para termos uma boa gestão em Saúde, precisamos de ter médicos como gestores. E porquê a gestão democrática? Porque esta é a que permite realmente enquadrar o maior número de saberes, controlar o poder… E porque, consequentemente, aumenta a produtividade. Contrariamente à gestão hierárquica, que também é uma gestão burocrática, contendo processos de lentidão e de irracionalidade inerentes a essa burocracia.

A gestão democrática pressupõe realmente que há uma palavra a dizer por todos os atores na área da Saúde. E que há um controlo – porque obviamente que os trabalhadores devem ser avaliados no exercício das suas funções –, mas esse controlo é feito de baixo para cima, tendendo as pessoas naturalmente a trabalhar melhor, porque foram elas que elegeram os seus pares e revêm-se neles. Ao contrário de uma gestão nomeada, que anda com frequência atrelada a favores políticos e onde o controlo é hierárquico, de cima para baixo.

JM | É um cliché, mas a verdade é que sem médicos não existiria SNS e este livro é, de certa forma, uma homenagem aos médicos que tiveram um papel ativo na construção do SNS…

RV | Sim. E à cabeça, importa lembrar os autores das Carreiras Médicas, redigido no início dos anos 60, mas que só foi possível colocar no terreno em 74/75, porque só aí há a noção clara que a constituição do SNS dependia das Carreiras Médicas e que a constituição das Carreiras Médicas dependia do SNS. É uma junção em que os médicos adquirem um papel universal: em que defender-se a si, enquanto classe profissional, é defender o país.

A classe médica é uma das classes profissionais em Portugal – curiosamente, sempre apelidada de privilegiada – que mais longe foi na defesa do país, porque os médicos perceberam que para terem uma carreira teriam que defender o Serviço Nacional de Saúde. E essa junção entre interesse particular, do setor e o interesse geral da população portuguesa é uma marca da história da Saúde em Portugal e europeia. Porque como o SNS nasce na década de 70 vai buscar o melhor dos sistemas de saúde nascidos no pós-guerra e acrescenta-lhe mais, nomeadamente porque nasce de um processo revolucionário.

Estes médicos foram gerir hospitais e abrir centros de saúde em todo o território nacional… Passaram noites inteiras a desenhar a gestão de hospitais distritais que tinham sido nacionalizados à Misericórdia, porque o regime tinha caído e não havia outras pessoas para fazê-lo. Estes médicos tiveram um papel histórico inexcedível! Ainda hoje há dezenas de extensões de centros de saúde em todo o país – eventualmente até centenas – que foram construídas de raiz pelos próprios médicos, não havia lá o Estado… E esta é a história da construção do Serviço Nacional de Saúde em Portugal!

JM | Como se explica que, tendo tido esta classe profissional um papel incontornável neste processo, nenhum médico tenha sido convidado a integrar a Comissão de Revisão para Lei de Bases da Saúde?

RV | É inexplicável! É um Estado que cada vez mais privilegia um discurso em torno da democracia formal, privilegia e acaricia o direito ao voto de quatro em quatro anos e os direitos políticos fundamentais, mas descora completamente a democracia substantiva, que é realmente ouvir quem sabe e chamá-los a participar da construção do país.

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JM | Que valores considera serem irrevogáveis nesta nova Lei de Bases da Saúde?

RV | Penso que esta Lei de Bases – por razões políticas que têm que ver com a Geringonça e com a situação atual do país – deu origem a uma grande discussão, mas substantivamente não permite garantir o SNS.

A meu ver, tem que haver uma percentagem do PIB de pelo menos cinco por cento alocada ao SNS; não pode haver concorrência dentro do SNS, ou seja, o SNS não pode concorrer consigo próprio; tem que haver gestão democrática; e tem que haver exclusividade dos médicos. Sem estas quatro condições, o Serviço Nacional de Saúde vai continuar em decadência e vamos ter cada vez mais o modelo do Estado Novo: uma Saúde pobre para pobres, uma Saúde média para médios e os ricos vão começar a ir ao estrangeiro…

Porque é que Portugal tem tido uma Saúde de excelência que chegou a ser a sétima melhor do mundo? Porque tínhamos um SNS para 10 milhões. Eu não me posso tornar um bom cirurgião de transplantes se não fizer inúmeras intervenções. Se só houver um conjunto de privilegiados a poder aceder a este especialista, ele não vai desenvolver competências de excelência.

É preciso admitir que temos um sistema hospitalocêntrico – fruto do poder dos médicos no processo de construção do SNS e da sua conquista pela especialidade –, assim como apresentamos falhas ao nível da prevenção e dos determinantes sociais de saúde, mas, no fim da linha, temos uma Medicina e uma Saúde de excelência a nível mundial, o que só acontece porque ela foi de excelência para 10 milhões. A partir do momento em que começa a ser para um grupo mais restrito, a excelência perde-se…

Estou convencida de que não há escala em Portugal para aguentar um sistema privado de saúde. É preciso não esquecer que 80% dos portugueses ganha menos de 900 euros! O que acontece agora é a utilização de rendas fixas que, a médio prazo, vão rebentar. E se por enquanto os médicos ainda ganham mais ou menos, vão começar a ganhar cada vez pior e uma boa parte dos hospitais privados vão paulatinamente começar a entrar em falência.

JM | Mas, neste momento, a tendência para a privatização ainda é crescente?

RV | Sim, neste momento ainda é crescente. Mas é, quanto a mim, um mercado que tem menos de uma década para entrar em forte crise. E aí vamos ter falta de profissionais de excelência. Porque não se volta a criar um cirurgião de um dia para o outro… Quando o hospital privado for à falência e o especialista não foi formado, nem esteve a treinar no SNS, vou precisar de 10, 20 ou mais anos para voltar a ter serviços de excelência. Portanto, o problema do SNS não é o que temos hoje à frente, mas é o que vamos ter daqui a 20 anos, porque não estamos a garantir a excelência de condições de trabalho para profissionais de saúde excelentes.

JM | Quais as principais consequências daqueles que destaca como os principais problemas do SNS: o subfinanciamento crónico e a falta de recursos humanos?

RV | O aumento das listas de espera no SNS, que é o grande jackpot do setor privado.

JM | Foi recentemente anunciada, pelo ministério da Saúde, a contratação de cerca de 1.400 profissionais… Uma espécie de penso rápido numa gangrena?

RV | Completamente. Primeiro temos que ver o que é que esse número representa em termos do todo nacional. Depois, saber se vai mesmo ser cumprido, já que não nos podemos esquecer que estamos em época pré-eleitoral. E vai ser cumprido em que condições? Porque se continuamos sem exclusividade, a tendência é para os portugueses com salários minimamente decentes optarem por ser atendidos no privado.

Não é só quantos vamos contratar, mas em que condições os vamos contratar…

O Governo está a fazer pressão para haver uma cada vez maior indiferenciação nos cuidados prestados.

JM | E essa indiferenciação na prestação de cuidados comporta enormes riscos?

RV | Claro! Enormes riscos para o SNS e, obviamente, para toda a população portuguesa.

JM | Encontra-se neste momento a preparar um novo livro, desta feita sobre o Serviço Médico à Periferia. Já pode levantar um pouco o véu sobre algumas das conclusões deste trabalho de investigação?

RV | Posso dizer que estou perfeitamente apaixonada pelo tema! O Serviço Médico à Periferia (SMP) é o contrário do burnout. É um happy work permanente! Neste momento, já vou em mais de 500 páginas de testemunhos de médicos que fizeram o SMP. E cujos olhos brilham quando falam deste período. Tinham autonomia, tinham trabalho em equipa, sentiam que estavam a fazer o melhor que podiam e que conseguiam, não havia sofrimento ético, havia precisamente o contrário, a noção de esforço até ao limite, utilizando todos os recursos possíveis. Sentiam que estavam a construir algo, eram criativos, sentiam reconhecimento.

O Serviço Médico à Periferia é uma fase absolutamente gloriosa da história da construção do SNS e da Saúde em Portugal.

JM | Mais uma vez com os médicos como grandes protagonistas…

RV | Sem dúvida! Embora também tenha existido um contributo importante por parte das populações locais, das lideranças políticas locais, de alguns médicos locais que colaboraram – outros não, porque os da clínica livre sentiam os do SMP como concorrentes –, e dos enfermeiros… Mas a grande força motriz do SMP é, sem dúvida, a classe médica.

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O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.