António Vaz Carneiro: “Em Portugal, 50% dos médicos sofre de exaustão. Entraria num avião se soubesse que metade da tripulação está em burnout?”
DATA
30/07/2019 18:09:09
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Jornal Médico
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António Vaz Carneiro: “Em Portugal, 50% dos médicos sofre de exaustão. Entraria num avião se soubesse que metade da tripulação está em burnout?”

“O leite de vaca é prejudicial à saúde? As pessoas devem fazer check-ups anuais? Os cigarros eletrónicos são tão eficazes como os adesivos de nicotina?”. No seu mais recente livro, o médico especialista em Medicina Interna, Nefrologia e Farmacologia Clínica e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, António Vaz Carneiro, procura esclarecer alguns dos principais mitos – uns mais inofensivos, outros mais perigosos – em torno da Saúde. E garante: “não é uma opinião, é evidência científica”. Em entrevista ao Jornal Médico, o coordenador do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência alerta para a necessidade de se travar o crescente movimento anticientífico que grassa a nível mundial e cujas consequências podem ser bastante nefastas. E isso faz-se com informação, sustenta. A nível nacional, o também diretor da Cochrane Portugal mostra-se particularmente preocupado com os elevados níveis de burnout dos colegas de profissão, pelo que tem investido muito do seu tempo no desenvolvimento de soluções para esta “realidade dramática” que afeta já metade dos médicos portugueses.

JORNAL MÉDICO (JM) | Afirma existir “um movimento anticientífico fortíssimo a nível mundial”. Como se explica esse movimento?

ANTÓNIO VAZ CARNEIRO (AVC) | Os Estados Unidos da América (EUA), nomeadamente o estado de Nova Iorque, está a braços com o maior surto/epidemia de sarampo de que há memória. Ao ponto de o mayor da cidade ter “afrontado” um dos mais poderosos grupos a nível social e económico, mandando encerrar uma das maiores escolas privadas detidas pela comunidade hasidim.

Um miúdo com sarampo, numa população não vacinada, é como um incêndio florestal! Temos assistido a mortes por pneumonia devido ao sarampo e outras doenças que já não víamos há anos.

No livro Mitos e Crenças na Saúde apresento e procuro desconstruir alguns mitos “divertidos”, mas esta tendência antivacinação é muito grave e não vislumbramos melhorias para breve…

JM | Considera que ainda se deve ao estudo – cujas conclusões vieram mais tarde a revelar-se falsas – que associou a vacinação contra o sarampo ao autismo?

AVC | Tem que ver com isso, mas também com muitas outras coisas… Tenho várias teorias sobre o assunto. Uma delas é a de que as pessoas gostam de “soluções mágicas”! Uma explicação simples e óbvia torna muito mais fácil compreender a realidade do que uma explicação científica… As pessoas acreditam que se colocarem os pés numa superfície fria no inverno vão constipar-se. Se eu disser que há adenovírus que se transferem das mãos para a orofaringe, esta minha explicação é muito mais complexa de entender e, portanto, menos aceite.

JM | Dada a sua experiência internacional, diria que os mitos e crenças que aborda no seu livro são exclusiva ou essencialmente da cultura portuguesa ou também existem em outros países?

AVC | Diria que são universais. Talvez um ou outro possam ser mais portugueses. E estão longe de serem os únicos… Escolhi estes, em primeiro lugar pela curiosidade, em segundo lugar pelo seu impacto negativo na saúde. E depois porque muita gente me pediu que de certa forma compilasse em livro este conjunto de textos que fui escrevendo ao longo de alguns anos para a revista Visão, numa tentativa, precisamente, de esclarecer as pessoas.

JM | O livro é, sem dúvida, uma ferramenta de literacia em Saúde e uma forma de aproximar o cidadão comum da ciência. Quão importante é, no seu entender, encurtar esta distância?

AVC | Crucial! Estamos atualmente a enfrentar uma situação nova: existe um movimento anticientífico mundial em todas as áreas. Não só na Medicina, mas também na Astrofísica, nas ciências climáticas, por exemplo… O que é facto é que as explicações científicas da realidade, sejam elas aplicadas a que campo for, são sempre paralelamente contestadas por explicações mais simples e mais imediatas. E para além de alguns interesses eventuais por detrás destas últimas, o que me parece é que a raça humana não conseguiu, até agora, absorver completamente aquilo que a ciência lhe trouxe. Basta pensar que como neandertais temos 90 mil anos de existência, mas a ciência, tal como a conhecemos atualmente, só tem mais ou menos 200. Ou seja, durante 90 mil anos explicámos a realidade através de metodologias algo religiosas, algo concetuais/filosóficas e, de repente, vêm dizer-nos que existe uma explicação científica para a realidade, para o mundo externo, tal como o vemos. Assim sendo, muito dos nossos instintos em negar essa “nova” informação – e isto é a minha perceção pessoal! – assenta em estruturas paleo-genéticas que temos no nosso cérebro e que nos impedem de compreender que um telemóvel existe porque existe uma ciência designada por Mecânica Quântica. Quanto maior a dificuldade em compreender isto, maior a tendência para acreditar em explicações mais simples. Explicações essas que acabam potenciadas pelas redes sociais, sem qualquer verificação/contestação das mesmas… Na Saúde, mais do que em qualquer outra área, esta posição anticientífica tem obviamente consequências mais graves e nefastas e é nosso dever ético tentar combatê-la, tentando o mais possível informar os nossos doentes.

JM | Este livro é uma espécie de “grito de resistência” contra essa posição anticientífica?

AVC | Não lhe chamaria “resistência”, na medida em que muitos de nós, médicos e profissionais de saúde e da ciência, estamos envolvidos nisto ativamente. Eu não quero que as pessoas olhem para mim, quero é que ouçam a minha mensagem e esqueçam o mensageiro. O que é verdadeiramente essencial e importante é a mensagem em si e a metodologia por trás daquilo que digo.

JM | Ainda que tenha tentado fugir ao “medicalês”, não considera que para algumas pessoas a leitura deste livro pode não ser assim tão intuitiva?

AVC | Tentei ao máximo simplificar o discurso científico e utilizar uma linguagem compreensível. Mas às vezes não é fácil, os fenómenos são muito complexos… Tenho sempre o cuidado de aliar à mensagem o porquê de dizer o que digo. E eu só afirmo aquilo que está assente em evidência científica de boa qualidade.

JM | Escreveu este livro a pensar na população em geral ou a pensar nos médicos?

AVC | Este livro destina-se, acima de tudo, à população em geral. Os médicos têm outros processos e fontes de informação muito mais sofisticados e complexos. Porém, também tenho tido resistências por parte de alguns colegas, que acham que provavelmente algumas coisas que eu digo vão de tal maneira contra algumas ideias enraizadas, que reagem negativamente. Uma das consequências de acreditarmos na Ciência como uma metodologia que nos explica a realidade é que temos que estar preparados para acreditar naquilo que for demonstrado através dessa metodologia, mesmo que vá contra as nossas convicções.

Pensemos no que nos diz a evidência sobre a toma de vitaminas por pessoas com 65 anos ou mais. Há n ensaios clínicos a comparar pessoas com 65 anos ou mais, saudáveis ou com doença cardiovascular (DCV) estável, a tomar suplementos vitamínicos – nomeadamente vitaminas A, B, C, D e E, selénio e zinco – com pessoas que não tomam estes produtos. São grupos iguais em tudo, exceto na toma das vitaminas, e os resultados de seguimento entre cinco a 10 anos mostram, ainda que com uma diferença modesta, que as pessoas que tomam vitaminas têm maior tendência a morrer de cancro e de DCV.

Tenho o dever de analisar cuidadosamente esta informação e se concluir, como é o caso, que a qualidade da informação é boa, então não posso omiti-la. Tenho que comunicá-la e deixar as pessoas decidir. Em 2019, não se proíbe nada, tenho o dever de informar os meus doentes, para que estes possam decidir com base na informação de que dispõem.

Para uma pessoa que tenha uma dieta normal, os suplementos vitamínicos são totalmente inúteis. A não ser que se tenha alguma patologia que limite a absorção das vitaminas, ou se esteja a tomar uma medicação com efeitos no seu metabolismo, não há qualquer necessidade nem indicação para suplementar com polivitamínicos. Sabemos que existe um negócio astronómico à volta destes produtos. Se me perguntar se o perigo é grande, respondo-lhe que não é… Porque a diferença entre quem toma e não toma não é assim tão marcada, mas dado que milhões de pessoas tomam estes produtos em todo o mundo, seguramente que vamos ter problemas em milhares delas!

JM | Em 2019, no seu entender, não há lugar à proibição… E à taxação de determinados produtos de alimentação, por exemplo? No contexto da prevenção, considera que esta pode ser uma medida eficaz?

AVC | Aí, penso que há duas questões a considerar… Em primeiro lugar, os dados epidemiológicos dizem-nos muito claramente e sem qualquer ambiguidade que há uma diferença na mortalidade entre populações que ingerem dietas indutoras de maior risco cardiovascular (RCV) e doença oncológica, em comparação com grupos populacionais que fazem dietas de menor risco. Há uma imensidade de estudos que comparam o teor médio de gorduras em várias dietas, parecendo justificar-se a diferente incidência de doença através da dieta, ainda que este fenómeno seja de efeito muito pequeno (ao contrário do que as pessoas pensam). Mas, sabemos que as doenças têm outros fatores etiológicos. E quando vamos fazer experiências e baixamos o nível de gorduras os resultados estão lá, mas são muito mais modestos e, em alguns casos, nem há grande impacto. Isto deixa-nos numa situação muito delicada… Ainda assim, não devemos deixar de fazer uma dieta menos indutora de risco, apesar de a diferença ser pouco marcada ou haver outros fatores em linha de conta.

Em segundo lugar: informação, informação, informação, informação, informação e mais informação! Sabemos, hoje em dia, que há um conjunto de informações importantes que fazem com que as pessoas alterem os seus hábitos. Por exemplo: o tamanho dos pratos e dos copos. Está provado que diminuir o vasilhame tem um impacto diretamente proporcional na quantidade de alimentos consumidas. A mesma coisa se passa com os impostos: parece haver evidência de que aumentar o preço dos produtos “nocivos” poderá limitar o seu consumo. Parece ser uma medida eficaz, que deve ser articulada com todas as outras, uma vez que por si só não vai resolver o problema.

JM | A evidência pode apresentar-se em vários graus, no que concerne à sua “força”, e costuma dizer-se que, em Medicina, nem sempre, nem nunca… Assim sendo, podemos ter certezas absolutas ou nunca há certezas absolutas em ciência?

AVC | Não há certezas absolutas em ciência. O que a ciência faz é medir e balizar a incerteza. A Medicina e a Biologia não são ciência exatas. Quer um exemplo de ciência exta? A Astrofísica.

O fenómeno biológico tem uma explicação científica que não é exata. A maneira como a célula/pessoa reage é suficientemente variável para apenas podermos falar em probabilidades. Qual é a probabilidade de uma pessoa ter determinada doença perante um resultado “anormal” de um exame? Qual é a probabilidade de determinada pessoa melhorar se tomar determinado medicamento? Qual é a probabilidade de uma pessoa que tem dois fatores de risco vir a desenvolver a doença relacionada com esses fatores de risco? Nunca posso afirmar se a pessoa vai ou não vai ter determinada doença. O que posso dizer é que a probabilidade de a pessoa poder vier a desenvolver uma patologia está entre x e y. Não há dois doentes iguais, não há dois doentes que respondam da mesma maneira… E mais do que isso, os próprios testes podem ser “anormais” e a pessoa não ter a doença (falsos positivos) ou podem estar normais e a pessoas estar doente (falsos negativos).

Quando manipulamos o conceito geral de certeza temos que perceber que os fenómenos biológicos – quer da saúde, quer da doença – são suficientemente incertos para a única coisa que podemos dizer seja “acreditamos que vá acontecer isto ou aquilo”. O que a ciência faz é balizar esses limites.

Se um doente me perguntar: “Se eu fumar vou ter cancro do pulmão?”. Posso dizer-lhe que a maior parte das pessoas que fumam não vai ter cancro do pulmão, mas que a maior parte das pessoas que têm cancro do pulmão fumam. Digo-lhe que deixe de fumar. Quando o que apenas posso fazer é quantificar esta incerteza e dizer: “Quando o Sr. fuma, tem 30 vezes mais probabilidade de vir a ter cancro do que se não fumar”. Mas vai ter? Não sei…

A ciência baliza-nos a capacidade de compreender a realidade. Ou seja, dá-nos uma base para podermos agir melhor, mais conscientemente e, claro está, com melhores resultados. Nunca nos vai é dizer o que vai acontecer de certeza a cada doente…

JM | Um dos mitos que faz questão de desmontar no seu livro é o de que as pessoas devem fazer check-ups anuais. Como fazer as pessoas perceber isto, se são constantemente “massacradas” com a importância do diagnóstico precoce de doenças várias, nomeadamente no domínio da Oncologia?

AVC | A questão dos check-ups foi uma questão que até há bem pouco tempo ainda não tinha levantado problemas, até termos dezenas de ensaios clínicos a comparar pessoas que realizam check-ups com outras que não os fazem…

Analisemos o conceito de check-up… Dado que, todas as doenças que forem detetadas em estádios primitivos/iniciais são sempre muito mais facilmente curáveis do que quando identificadas em estádios mais avançados, então vou salvar muitos mais doentes se detetar mais cedo as doenças. Esta conclusão é totalmente verdade e é verdade para todas as doenças, especialmente para as oncológicas. Então, fazemos o check-up, pegamos no resultado e intervencionamos em consonância com o mesmo. Parece lógico, mas esta ideia tem vindo a ser desmentida por um conjunto de estudos que demonstram que quem realiza mais check-ups tem mais complicações e morre mais do que pessoas que não os realizam. Repito o que disse relativamente à toma de suplementos vitamínicos: a diferença é pouco marcada, mas está lá e é consistente de estudo para estudo!

Então, a realização de check-ups não só não salva as pessoas, como parece aumentar o risco em termos de mortalidade e este é um resultado inesperado.

A explicação tem que ver com o risco de base das pessoas. Os testes vão ter resultados espúrios. E não são os falsos negativos que nos preocupam, mas sim os falsos positivos, que nos vão fazer intervir do ponto de vista diagnóstico e terapêutico. E, não tendo a doença, a pessoa vai ficar apenas com o lado mau da terapêutica e não com o seu benefício.

No caso do cancro, o que acontece é que há um sobrediagnóstico, por via da imagiologia. Estamos a detetar coisas no corpo humano que não fazemos a mais pequena ideia do que é que querem dizer. O caso mais paradigmático foi o de um grupo de radiologistas americanos que, numa perspetiva preventiva, resolveu colocar um anúncio a pedir voluntários para realização de uma TAC da cabeça aos pés, de forma a diagnosticar neoplasias em fase inicial. A primeira conclusão, depois de testados mais de três mil doentes, é a de que ninguém é normal. Os achados mais frequente são alterações da coluna vertebral, logo seguidas de nódulos solitários do pulmão. Estes últimos consistem em pequenas formações que a maior parte das vezes têm que ver com partículas que ingerimos ou são resultado de infeções sem importância. Ora, posto isto, o que faço? Realizo uma TAC? E fuma ou não fuma? Faço uma biópsia? E é precisamente aí que começa o problema: vamos entrar num corrupio de testes invasivos que vão acabar por lesar a pessoa, que não tem nada, porque a esmagadora maioria destes nódulos não são cancro, mesmo em fumadores.

Concluindo, os check-ups estão indicados em grupos de risco previamente determinados. Se a jovem de 30 anos tem uma mãe que morreu aos 32 com cancro de mama deve fazer mamografia mais cedo. Se o jovem de 35 anos teve um pai que morreu de morte súbita aos 40 deve ser rastreado para RCV. Pelas razões que apresentei, o check-up global para todos os doentes não é, atualmente, uma abordagem defensável.

JM | Outro mito comum: “O médico não me prescreveu nenhum medicamento ou exame, é um mau médico ou não percebe nada disto”… Como se desconstrói isto?

AVC | Informando os doentes. Este não é um fenómeno exclusivamente português, mas sim universal. Nos EUA houve recentemente um estudo com doentes de classes médias-altas a quem foram feitas algumas questões sobre o papel da ciência na clínica. Porque é que achavam que a ciência era importante na prática clínica dos médicos… E os resultados foram surpreendentes. Uma resposta frequente foi a de que “um bom médico é aquele que intervém muito, faz muitos check-ups e receita muitos medicamentos”. Ora esta opinião vem completamente ao arrepio do que nós, peritos, entendemos que é uma boa prática clínica. É exatamente o oposto! O que nos cria um problema. Temos que nos sentar e conversar com o doente. E este livro é um bocadinho isso. É tentar convencer as pessoas que um dos melhores gestos médicos é, muitas vezes, o não fazer nada. Para ser sincero, a maioria das vezes até me dá mais trabalho não fazer nada e ter que seguir mais de perto e com menos tempo de intervalo o doente, do que instituindo logo uma terapêutica. Há que tentar convencer as pessoas de que a melhor solução para os seus problemas por vezes passa por estratégias que não são de intervenção farmacológica ou cirúrgica.

 

JM | Somos um país de mitos e crenças, de sabedoria popular... Mas também ainda somos um país onde o que o médico diz é lei… Não concorda?

AVC | Sim, um pouco… Talvez seja uma questão cultural! Mas atenção: podemos não querer que seja “lei” mas é uma informação absolutamente crucial que os doentes devem ouvir..

Quando me formei, os doentes não questionavam nada do que eu dizia, o que eu lhes dizia era lei. Como tinha vindo recentemente dos EUA, tentava forçar um pouco o diálogo e explicar-lhes a minha estratégia de intervenção.

Com o advento da Internet, os doentes começaram a pesquisar no “Dr. Google” e a aparecer na consulta a achar que já sabiam tudo e dominavam a ciência.

Atualmente, estamos a voltar a uma realidade em que pela extrema complexidade das doenças diagnosticadas e das opções terapêuticas disponíveis, a explicação da minha estratégia de intervenção é muito mais complexa e demora muito mais a transmitir ao doente. Hoje demoro vinte minutos a explicar algo que há uns anos explicava em três minutos. Tenho mais opções, as opções são mais complexas e, como tal, são mais difíceis de explicar ao doente.

JM | O pedido de uma “segunda opinião” também ainda está fortemente enraizado. O que leva as pessoas a fazer isto, no seu entender? Tem mais desvantagens do que vantagens?

AVC | Em casos graves, envio sempre os meus doentes a uma segunda opinião, mas sou eu que indico o colega. Só tenho a ganhar com isso. No caso de uma cirurgia séria, por exemplo, se o meu colega discordar, falo com ele e em conjunto vemos o que poderá ser melhor para aquele doente. A segunda opinião é inteiramente legítima e deve ser implementada sem qualquer espécie de complexos.

 

JM | Como é ser médico nos dias de hoje?

AVC | É uma profissão extremamente desgastante. Um estudo recente mostra que metade dos médicos em Portugal estão em burnout. Costumo perguntar às pessoas se entrariam num avião caso soubessem que metade da tripulação e dos controladores aéreos estava em situação de burnout.

O burnout médico é um dos problemas que atualmente mais me preocupa e ao qual tenho dedicado bastante do meu tempo. Procuro dar a minha contribuição através de um dos aspetos que maior pressão faz sobre os médicos que é a disponibilização de informação relevante, credível e em real time. A minha contribuição para este problema do burnout passa precisamente por tirar da cabeça dos médicos a preocupação com a sua atualização, no momento em que estão com os doentes. Estou envolvido em grandes projetos neste sentido, que não vão resolver tudo, mas que vão permitir retirar dos ombros dos médicos alguma angústia. Todos os meus esforços têm sido no sentido de montar sistemas de apoio à decisão clínica, que mais não são do que softwares online, disponíveis 24 horas por dia/sete dias por semana, rapidamente pesquisáveis no caso de surgir alguma dúvida.

Depois há outro aspeto a ter em linha de conta quando falamos de burnout médico: as condições e as horas de trabalho. É preciso analisar os dados e ver que a faixa etária mais afetada pelo burnout é a dos médicos entre os 35 e os 45 anos e este é um problema que tem que ser solucionado socialmente. Trabalhamos demais, em condições muitas vezes muito difíceis. O serviço de urgência moderno é como se fosse um campo de batalha! É como se trabalhássemos em medicina de guerra, porque é uma medicina aguda, sem conhecimento prévio dos doentes, muitos deles com situações muito graves. Um período de 24 horas a trabalhar nesta situação obviamente que tem consequências…

Face a esta realidade, o próprio médico tem a obrigação ética de se proteger: tem que se cuidar, descansar, fazer desporto, passear… É, portanto, um problema em primeiro lugar de responsabilidade individual e depois do próprio sistema. De uma vez por todas, o sistema atual já não é aceitável, porque está provado que os níveis elevados de burnout aumentam os erros, deterioram a relação médico-doente e implicam resultados menos bons. Como tal, tem que ser o SNS a fazer uma revisão da forma como quer prestar cuidados aos seus doentes, ao mesmo tempo que protege os seus profissionais.

A Ordem dos Médicos tem tentado múltiplas soluções para este problema. Mas, não vamos conseguir solucioná-lo ou, pelo menos, atenuá-lo se não houver uma combinação entre um esforço individual do médico para se proteger e ser capaz de estar sempre na melhor forma possível e o sistema que também protege o profissional, porque não é razoável ter 30 doentes para ver numa manhã de consulta.

 

JM | Tem então que existir, também, uma vontade política para a resolução deste problema?

AVC | Em primeiro lugar é preciso reconhecer o problema. E eu não sei se a população portuguesa e os responsáveis políticos têm noção da dimensão deste problema. Eu costumo dizer que quero o meu médico bem-disposto, a jogar golfe e repousado, que é para quando eu precisar dele ele esteja bem, na sua melhor forma física, intelectual e emocional…

A minha prática clínica atual é muito mais difícil e complexa do que há 40 anos: 95% dos medicamentos que hoje utilizo não existiam quando saí da faculdade. A tecnologia aumentou 300%. Se combinar essa complexidade da prática com as expetativas cada vez mais elevadas dos doentes, a pressão sobre nós, médicos, é brutal e por vezes até enveredamos por comportamentos para solucionar os problemas dos doentes que nos colocam em causa e que se podem virar contra nós. Comportamentos que sob o ponto de vista formal podem ser condenáveis, mas nos sentimos forçados a adotar perante aquele doente que temos à nossa frente… De qualquer forma, ao fazê-lo estamos a eternizar os problemas. Faz-me lembrar quando após a mais recente intervenção da troika em Portugal, os resultados do SNS foram avaliados e não pareceram muito afetados negativamente, tendo o efeito epidemiológico sido modesto. Isto porque os profissionais foram capazes de amortecer o impacto dos cortes orçamentais gigantescos, por via da sua enorme resiliência e pela capacidade de se reorganizarem com menos recursos para produzir o mesmo ou ainda mais. Ora isto acaba por se virar contra nós, profissionais, porque os gestores dizem que se trabalhamos com menos dinheiro e produzimos os mesmos resultados, então não são necessários mais recursos.

JM | Que caraterísticas diferentes reconhece nas gerações mais novas de médicos face aos da sua geração?

AVC | Querem ter uma vida mais simples do que eu tive. Mais simples, mais organizada, mais preditiva, com maior qualidade de vida (não estão dispostos a trabalhar as horas que eu trabalhei). Mas estão dispostos e interessados em fazerem um bom trabalho. As nossas faculdades formam excelentes profissionais e os jovens médicos saem da faculdade a saber muito mais do que eu quando saí, do ponto de vista técnico. Em termos de integração no mercado de trabalho, deixaram de querer ter uma existência profissional autónoma, para passarem a querer ser assalariados. Todo o sistema se virou para assalariar os médicos. É uma evolução natural e justificada, quanto mais não fosse pelos custos crescentes em Saúde.

O médico individual, aquele que tinha os seus doentes, é uma figura cada vez mais rara. Talvez não seja mau, na medida em que a atual complexidade dos cuidados também implica outras opiniões e um trabalho cada vez mais em equipa.

Os médicos de hoje em dia não têm problema nenhum em ser assalariados, porque querem ter uma vida tranquila, preditiva, querem entrar às nove e sair às cinco [horas]. Estão muito bem preparados tecnicamente, mas ao mesmo tempo têm uma relação completamente diferente com o sistema, por comparação aos colegas da minha geração que tinham um conjunto de doentes e duas carreiras em paralelo (pública e privada). Quando as tecnologias caem em força em cima da Medicina e as terapêuticas custam fortunas, é natural que o sistema se altere e numa necessidade de manter padrões de qualidade elevados os hospitais – públicos e privados – funcionem como “patrões” dos médicos, sendo que esta é uma profissão que se está a tornar cada vez mais uma profissão de equipa.

Isto terá, obviamente, consequências ao nível da relação médico-doente, que vai certamente ressentir-se. Acredito que daqui a uns anos, tal como já acontece nas unidades de cuidados intensivos, o que vai acontecer é que vamos ser tratados por equipas médicas.

JM | Vamos deixar de dizer “o meu médico”… Mas, vai haver médicos, certo? Ou serão substituídos por computadores/robots?

AVC | Vai haver médicos, a trabalhar em equipas. A qualidade vai subir, a probabilidade de erro vai diminuir e a satisfação dos profissionais vai aumentar. Como é que os doentes vão reagir? Isso não consigo ainda prever… Numa tentativa de normalizar os procedimentos, quantificar os custos e garantir a qualidade não haverá alternativa e a transformação na Medicina vai ser muito grande.

Claro que continuará sempre a haver médicos, embora existam soluções de inteligência artificial (IA) muito interessantes. Estamos ainda longe da reprodução do raciocínio clínico, mas já há coisas muito interessantes em termos de softwares de apoio à decisão clínica. Não substituem o raciocínio do médico, mas ajudam a pensar melhor.

Há, por exemplo, uma aplicação que deteta a fratura do pulso: um software que lê a radiografia e faz o relatório com recurso a uma base de dados que tem mais de um milhão de fraturas. Ora, nenhum médico alguma vez teve oportunidade de ver esse número de fraturas do pulso.

Acredito que este seja o caminho e esta é uma das áreas que mais intensamente está a ser estudada atualmente, enquanto suporte à decisão clínica. Não vejo tão cedo a capacidade de virmos a substituir o médico por IA ou robots. Porque ao mesmo tempo a própria ciência médica vai ganhar uma complexidade de tal ordem que vamos sempre precisar do raciocínio abstrato dos médicos.

 

JM | Que inovação (tecnológica) gostaria de ver, na área da Saúde, dentro de 10 anos?

AVC | Há várias, mas se tivesse que escolher uma seria o fluxo de informação para toda a gente, com informação de alta qualidade, apresentada de forma diferente para diferentes alvos (profissionais de saúde, gestores, políticos, população/doentes). Se conseguíssemos montar um sistema de informação de alta qualidade que permitisse a todos estes agentes terem acesso instantaneamente, 24 horas por dia, sete dias por semana, a informação de alta qualidade, isso teria um impacto absolutamente brutal nos sistemas de saúde: diminuiria o desperdício e ajudaria a determinar o que é melhor para cada comunidade.

A captação de informação através de um sistema capaz de combinar todos estes sinais de informação com a ciência seria um dos maiores desenvolvimentos. A deteção do que se passa na Saúde, todos os dias, a nível individual… Uma captação de sinal que me permitisse que, quando o doente entra na consulta, eu soubesse toda a sua existência clínica seria uma revolução completa, porque permitiria ver a consequência direta da minha intervenção, em real time.

Concluindo: captação de sinal, fluxo de informação e acesso ao conhecimento.

JM | Ainda não falámos das terapias alternativas, mas já ficou clara a mensagem, ao longo da nossa conversa, de que Medicina só há uma: a Medicina baseada na evidência…

AVC | Não tenho nada contra as ditas terapias não convencionais. Apenas exijo que estas apresentem os mesmos estudos que a Medicina alopática. Caso apresentem os mesmos resultados eu serei o primeiro a apoiá-las. Não me parece justo que existam dois pesos e duas medidas… Não é razoável exigir-se à indústria farmacêutica estudos que demoram 10 ou mais anos e que representam um investimento de centenas de milhões de euros para introduzir um determinado medicamento no mercado e depois aceitar todo e qualquer tipo de produtos das terapias alternativas, sem qualquer escrutínio ou prova de eficácia.

O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde
Editorial | Joana Torres
O (Des)alento da Medicina Geral e Familiar no Serviço Nacional de Saúde

A atual pressão que se coloca nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) em Portugal é um presente envenenado para os seus utentes e profissionais de saúde.