Primeiro curso de Medicina privado em Portugal: Médicos estão contra!
Envolta em polémica, a aprovação do primeiro curso de Medicina privado do país pela A3ES está longe de reunir o consenso da comunidade médica. Na realidade, as principais estruturas representantes desta classe profissional estão contra o curso da Universidade Católica Portuguesa, não pelo seu cariz privado, mas por considerarem desnecessária a abertura de mais vagas em Medicina a nível nacional e por identificarem falhas estruturais no currículo em questão. A UCP responde às críticas, apresentando um rol das "mais-valias formativas que a estrutura curricular do novo curso permite" e sublinhando a intenção de formar "médicos para o séc. XXI".

Os alunos finalistas do ensino secundário terão, a partir de setembro de 2021, uma nova porta de entrada no curso de Medicina, em Portugal. Às oito escolas médicas já existentes, junta-se a Universidade Católica Portuguesa (UCP) com o primeiro curso de Medicina no ensino privado em Portugal.

A reitora da UCP, Isabel Capeloa Gil, deu a conhecer a aprovação do curso pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) através da rede social Twitter, no passado dia 1 de setembro. A aprovação deste curso deixou a comunidade médica descontente, acrescendo o facto de terem ficado a saber da decisão através da comunicação social.

Em outubro de 2018, a UCP tinha entregue a primeira proposta, que foi chumbada em dezembro de 2019, baseada em dois pareceres negativos, não vinculativos, da Ordem dos Médicos (OM) e da avaliação de peritos da A3ES. A Universidade Católica apresentou recurso, expondo posteriormente uma nova proposta, agora aprovada.

António Medina de Almeida: “A UCP pretende formar médicos para o séc. XXI”

O médico António Medina de Almeida é o responsável pelo novo curso de Medicina da UCP. Após ter estudado na Universidade de Cambridge, o especialista em Hematologia regressou a Portugal, em 2006, mas já colaborava há pelo menos sete anos como professor em alguns módulos de ensino na UCP.

O currículo de estudos superiores da Universidade de Maastrich (Holanda) é o modelo em que a universidade portuguesa se baseou para espelhar as técnicas de ensino, adaptando-as à realidade nacional.

Quando questionado sobre o arranque efetivo do curso, Medina de Almeida afirmou que o currículo já está preparado, encontrando-se na sua última revisão, e que os docentes estão neste momento em formação.

Para o responsável, a linha pedagógica do curso “é uma mais-valia, na medida em que a estrutura curricular permite que os alunos aprendam observando os processos, nas várias disciplinas. Teremos vários modelos para utilizar durante toda a vertente deontológica e, nos módulos integrados, os alunos desde cedo vão perceber o funcionamento do corpo humano como um todo e não como partes separada”.

Na opinião de responsável do curso, “a segunda grande mais-valia são os métodos de ensino. Teremos aulas teóricas, mas a maior parte do ensino será feito com base no modelo de resolução de problemas. Os alunos vão estar a trabalhar em grupos e em equipa, de forma a resolverem vários desafios e problemas clínicos. Portanto, desde o início que os alunos vão treinar para terem maior agilidade na sua prática clínica futura”.

Outra vantagem, acrescenta Medina de Almeida, “será uma constante no processo de ensino e assenta no respeito pelo doente como um todo e no tratamento da doença pelo bem-estar do doente como um todo”.

Uma das inovações do novo curso de Medicina é a ampla utilização da vertente tecnológica nas técnicas de ensino. Segundo o docente, “vamos ter várias tecnologias: desde manequins, a modelos anatómicos vários e realidade 3D para estudos de anatomia não invasiva”. Além disso – e no âmbito do protocolo da UCP com o Hospital da Luz – “os alunos vão beneficiar de treino no centro de estimulação” desta entidade hospitalar privada. “É um centro enorme, talvez o maior da Europa, onde os alunos poderão, antes de ter contacto real com os doentes, treinar algumas técnicas como a flebotomia, a massagem cardíaca, entre outras, de maneira a ter já algum à vontade com essas técnicas”, adiantou ao Jornal Médico.

No que respeita ao perfil do médico que a UCP pretende formar, António Medina de Almeida afirma que “a UCP pretende formar médicos para o século XXI, isto é, médicos com capacidades de raciocínio, que olhem para o ser humano com capacidade de empatia e de ligação com o seu doente. Que não sejam somente técnicos, mas que tenham excelência técnica acoplada a uma grande humanidade. Este é o grande desafio hoje em dia: destilar as enormes quantidades de informação de que dispomos, sem perder o contacto humano de que vive a Medicina”.

Relativamente ao público-alvo deste curso superior, o responsável refere que se destina tanto a estudantes portugueses, como a estudantes estrangeiros, tendo em conta que os primeiros anos do curso serão lecionados em Inglês. Medina de Almeida considera que este curso poderá, deste forma, ser uma mais-valia para os estudantes que todos os anos emigram, com o intuito de fazer o curso de Medicina no estrangeiro.

“Não tenho dúvida que a maior parte dos nossos alunos serão portugueses. Sabemos que todos os anos, pelo menos 400 alunos vão estudar Medicina para países estrangeiros, por isso não tenho dúvida que a maior parte dos candidatos serão deste grupo”, afirmou.

Segundo as últimas previsões, o curso arranca já no próximo ano letivo de 2021/22 e contará no primeiro ano com cerca de 50 estudantes, progredindo nos anos seguintes até atingir o limite de 100 alunos por ano (ver caixa).

OM contra: Em causa está a viabilidade da proposta e não o cariz privado da instituição de ensino

Um dos pareceres negativos ao novo curso privado de Medicina da UCP partiu da Ordem dos Médicos (OM).

Em conversa com o Jornal Médico, a propósito do tema, o bastonário da OM, Miguel Guimarães, deu a conhecer os principais motivos pelos quais a estrutura chumbou as duas propostas apresentadas pela UCP. “Estes pareceres negativos não se prenderam com o facto de se tratar de uma universidade privada, mas sim com a própria viabilidade da proposta, já que todos os pareceres dados pela OM se regem pela independência e isenção”, sublinhou, lembrando que a OM havia assinalado “a maior maturação do documento que nos foi submetido este ano, bem como o acolhimento de algumas das sugestões avançadas pela OM […], ainda subsistem na proposta atual vários motivos de preocupação para a OM que colocam em causa a qualidade da proposta NCE/19/1900184”.

De um modo geral, os três principais motivos pelos quais a OM esteve contra esta aprovação prendem-se, primeiramente, com “o futuro ainda incerto da parceria público-privada (PPP) do Hospital Beatriz Ângelo (HBA) com o Grupo Luz Saúde (GLS) e o seu acordo com a UCP no âmbito deste curso, com os locais de estágios em cuidados de saúde primários (CSP) e, ainda, com a falta de docentes contratados”.

A incerteza relativa ao HBA deve-se ao facto do contrato que este hospital tem com GLS ir terminar em janeiro de 2022 e, já existir a confirmação de que não haverá renovação do acordo entre as duas instituições. Tal situação deixa dúvidas no acordo estabelecido entre o hospital e a UCP, nomeadamente na realização de estágios clínicos em ambiente hospitalar no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Na opinião da OM, esta é a instituição de saúde que “indubitavelmente reúne melhores condições para assegurar um processo de ensino/aprendizagem com qualidade, dada a sua maior diferenciação clínica, diversidade de patologias e casuística, e longa experiência e excelência na formação médica pós-graduada”.

A título ilustrativo, o bastonário referiu o facto de que, durante o ano de 2019, “o serviço de Neurologia do Hospital Luz Lisboa tenha tido apenas dois episódios de AVC tratados com trombólise, enquanto esse número ascende a 94 no HBA; da mesma forma o HBA registou em  2019 uma percentagem de cesarianas de apenas 22% (a melhor de todo o país), sendo esse número de 56% no HLL”.  Reside assim, neste ponto, a inviabilidade espectável e “o fundado receio da OM de que o ensino somente em instituições de saúde privadas seja insuficiente e não garanta a desejável diversidade de entidades nosológicas e, sobretudo, não assegure o contacto dos estudantes com patologia aguda fundamental para a sua formação”.

A segunda razão prende-se com os locais de estágio dm CSP. “Vemos com apreensão que algumas rotações [entre o HLL/HBA e as restantes unidades do GLS] continuam a não dispor de instituições de saúde que sejam capazes de responder convenientemente aos objetivos de aprendizagem definidos para as repetitivas unidades curriculares [UC]” frisou, como é o caso da UC ‘Mulher e Crianças’ nas especialidades de Ginecologia, Obstetrícia, Neonatologia e Pediatria.

Miguel Guimarães referiu ainda que na proposta de 2019, “a OM havia assinalado a hipertrofia da UC ‘Portefólio’ como um aspeto a corrigir, pois acabava por limitar as restantes UC de índole diretamente clínico […]apresentando muito menos ECTS dedicados a contacto efetivo com utentes dos que vigoram nos planos de estudo das atuais escolas médicas portuguesas”, e foi com “alguma perplexidade que constamos que, daí, não resultou aumento do número de horas […] e que, nalguns casos, este acabou inclusivamente por diminuir”. 

O último ponto pelo qual esta proposta não é, para Miguel Guimarães, nem para a Ordem dos Médicos, uma proposta viável está ligada com ao número de recursos humanos, mais especificamente de docentes a lecionar neste curso verificando-se “uma tímida progressão a este nível”.

Da proposta deste ano consta “um aumento (líquido) de 21 novos docentes contratados mas, infelizmente, não necessariamente direcionados ou priorizados para as UC mais deficitárias: na verdade, seis destes novos docentes, num total de 0.7 ETI, foram contratados para ministrar apenas UC optativas (Fundamentos de Saúde lobal e Gestão e Política de Saúde), enquanto para a UC ‘Mulher e Criança’, uma das mais deficitárias na proposta anterior, foram contratados somente dois docentes (num total de 0.4 ETI), afirma o bastonário.

“É igualmente com preocupação que observamos que, fruto da redistribuição da carga horária docente, houve uma diminuição de 432 horas de docentes contratadas na UC de Cirurgia face à proposta do ano passado, que esperamos que não seja reflexo de um desinvestimento nesta área curricular”, acrescentou ainda Miguel Guimarães.

Ainda assim, o bastonário referiu o parecer não vinculativo de qualquer parecer dado pela OM, pois “em última análise a tomada de decisão seria sempre da A3ES, tendo-nos sido pedido apenas o nosso parecer que em nada iria modificar a decisão final, mas de qualquer das formas justificamos todos os pontos que nos foram solicitados”, concluiu.

O bastonário deixou ainda um recado a todos os jovens: “Num curso que se pretende humanista e que precisa desse contacto direto com o paciente, em que é a comunicação que torna eficaz esse contacto, os alunos não deverão focar-se exclusivamente na vertente mais tecnológica que este curso apresenta, pois tal como até o atual Papa um dia disse ‘o último reduto daquilo que é o humanismo e a compreensão das pessoas reside na Saúde’”.

Ao nosso jornal, Miguel Guimarães adiantou, ainda, que a OM teve a oportunidade de analisar outras duas propostas para cursos privados de Medicina a pedido da A3ES – mais precisamente das universidades Fernando Pessoa e CESPU – e que, também a ambas, o seu parecer foi negativo “por lhes faltar sustentabilidade”.

Número crescente de graduados preocupa ANEM e APMGF

“O número crescente de graduados, anualmente, é uma preocupação para a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), sendo este ponto intensificado com a aprovação do curso de Medicina da UCP. Este é um fator que preocupa os estudantes, tendo em conta a já insuficiente capacidade formativa das entidades para a realização de estágios pós-graduados, mas também pela crescente falta de vagas nas especialidades médicas”, sublinha a presidente da ANEM, Mar Mateus da Costa.

“É expectável que a qualidade dos cuidados de saúde ao nível do SNS seja afetada, tornando-o pouco atrativo e motivando, assim, a emigração”, acrescentou a responsável.

Em declarações exclusivas ao Jornal Médico, a direção da ANEM quis ainda deixar claro que é contra a abertura de novos cursos de Medicina, não sendo esta posição movida por qualquer questão ideológica de universidades públicas contra privadas.

“Abrir 50 novas vagas em Medicina, quando anualmente temos duas mil, é irrisório. Mas, às vezes, confunde-se a falta de médicos com a questão dos ingressos nas faculdades. Em Portugal, temos uma situação ingrata: temos falta de médicos no SNS, mas excesso de alunos nas universidades médicas”.

Quem o diz é o médico de família e presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF, Rui Nogueira, lembrando os números que o preocupam: “Daqui a cinco anos estaremos a formar 500 médicos de família por ano, sendo que no SNS reformam-se 50. Estamos a formar 10 vezes mais do que a necessidade”.

Numa nota mais positiva, o especialista refere que o novo curso “até pode ser benéfico para desenvolvermos as nossas capacidades de formação, nomeadamente pré-graduada, bem como para podermos contribuir com médicos para o mundo, já que em Portugal não vão ser necessários”.

 

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Editorial | Joana Torres
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